O assunto tem gerado algum debate e, como todos os debates dignos desse nome, há sempre argumentos contra e a favor. Mas será que devemos beber menos leite ou na verdade este é mesmo essencial para os nossos ossos? O debate segue dentro de momentos.
Não surgiu do nada, este debate. Desde pequenos que a maior parte de nós foi educada para a importância de beber leite. "Estás a crescer", "Faz bem aos ossos", "É para o teu bem". O leite, diziam-nos, era boa opção para qualquer refeição. No entanto, hoje em dia há cada vez mais especialistas a contrariar as ideias com que fomos educados. Será o leite assim tão importante?
Não é novidade que o leite é conhecido por proporcionar grandes quantidades de cálcio fundamental para que os nossos ossos se tornem fortes e saudáveis. Não é por acaso que o corpo dos mamíferos o produz de forma natural precisamente para alimentar as crias quando estas estão a dar os primeiros passos. Isto funciona também para mamíferos bípedes como nós, que geralmente usufruimos nos nossos primeiros tempos de vida de aleitamento materno. Uma criança que fosse privada de cálcio seria uma criança subnutrida.
Para evitarmos alarmismos dizemos desde já que não é preciso fugir do leite como o diabo foge da cruz. Um adolescente que goste de beber um copo de leite ao pequeno-almoço teria piores consequências se o decidisse substituir por um calórico refrigerante gaseificado. O que está em causa não é tanto se devemos preocupar-nos com o leite em particular quando temos tantas outras opções nutricionais bastante adversas ao nosso alcance. É uma coisa mais simples: talvez o leite não seja tão essencial quanto pensávamos que fosse.
A nutrição, enquanto disciplina, é relativamente recente. Isto explica em parte porque é que por vezes ouvimos coisas contraditórias dos especialistas. Não é maldade dos profissionais, que só nos querem confundir a cabeça. A verdade é que estudar um certo tipo de alimentação não é um processo igual ao de uma farmacêutica que estuda os efeitos (benéficos e adversos) de um medicamento. Mesmo estudar um alimento em particular como o leite pode ser um desafio gigantesco.
A nutricionista Catarina Cunha recorda-nos que há não muito tempo atrás – e quem viveu o tempo do Estado Novo certamente que o recorda – o óleo de fígado de bacalhau era quase de consumo obrigatório. Muitos pais davam os piores dissabores aos filhos com a melhor das intenções. Há benefícios no óleo de fígado de bacalhau. Mas, vistas bem as coisas, quando este hábito cessou o país não caiu numa apocalítica carência vitamínica. Esta ideia feita sobre o óleo de fígado de bacalhau era, de facto, desadequada. E como vimos, as crianças que vieram depois até foram poupadas a este dissabor.
O que o leite nos dá
Catarina Cunha explica-nos que "a partir dos dois anos de idade começamos a ter um decréscimo na produção da lactase" o que, com o tempo, "aumenta a possibilidade de nos tornarmos intolerantes ao leite, mais concretamente à lactase e caseína". A este propósito, a nutricionista questiona mesmo se o facto de o número de pessoas intolerantes ao leite estar a aumentar, "não será do incentivo excessivo ao consumo de leite por ser um alimento supostamente ideal".
O consumo de leite e de outros produtos lácteos (iogurte, queijo, etc.) é recomendado pela maioria das sociedades de nutricionistas, em virtude dos seus efeitos benéficos em termos de absorção de cálcio e mineralização óssea. É inegável que o leite é a fonte mais fácil de obtenção de cálcio em maior quantidade. Os nossos ossos e dentes podem beneficiar dele. Além do mais é também uma fonte proteica, o que é benéfico do ponto de vista muscular. Alguns estudos referem ainda uma outra possível vantagem no consumo de alimento: a sensação de saciedade – o que quer dizer que, enquadrado numa dieta equilibrada, pode ajudar quem esteja a tentar perder peso.
Onde não há consenso entre os especialistas é se esta é mesmo a forma mais adequada de obtermos o cálcio de que necessitamos. A única não é certamente.
Em entrevista ao MSN Saúde, a nutricionista Ana Carolina Soares realçava que "há outros alimentos ricos em cálcio e com boa absorção desse mesmo cálcio, como é o caso das couves, do próprio feijão branco, até dos frutos secos". Há quem opte também pelo leite de soja. Em qualquer dos casos, falamos de alimentos cuja ingestão em quantidades adequadas podem proporcionar o cálcio e as proteínas de que necessitamos. E a verdade é que mesmo comparando com outros produtos lácteos, como é o caso dos iogurtes, a nutricionista acredita que o iogurte pode ser uma opção um pouco mais segura, comparativamente ao leite, "pelo facto de ser fermentado".
Um polémico estudo norte-americano intitulado Milk – The promoter of chronic Western diseases (traduzindo: leite, o promotor de doenças crónicas ocidentais) refere mesmo que os efeitos adversos a longo prazo do consumo de leite na saúde humana têm sido negligenciados.
Ao mesmo tempo, uma das dificuldades no estudo deste tema reside precisamente no facto de o consumo de leite estar tão enraizado em certas sociedades (onde se inclui a portuguesa), que chega a ser tratado como dado adquirido. Mas talvez valha a pena continuar a estudar o assunto.
O que nos pode fazer duvidar
Algumas das dúvidas que o leite provoca têm já algum tempo. Afinal de contas outras espécies de mamíferos só o consomem nos primeiros tempos de vida. Quando atingem a idade adulta o leite já não é mais uma necessidade. Os seres humanos, no entanto, continuam a consumi-lo. Com a curiosidade de ser leite que pertence a outras espécies de mamíferos (mais de 90 por cento do leite que consumimos é oriundo de vacas).
A este respeito, Ana Carolina Soares realça que "muitas vezes esquecemo-nos que o leite acaba por ser uma secreção de uma glândula que tem como objetivo fazer desenvolver um animal e fazê-lo crescer. Há portanto uma componente hormonal associada ao leite. Quando eu desenvolvo leite para amamentar um filho, desenvolvo um determinado perfil hormonal para o fazer crescer numa determinada proporção, se eu vou beber leite de uma vaca, que é maior do que nós, a proporção hormonal que surge será outra. E podemos não estar bem preparados para receber essa quantidade de estimulação hormonal", refere.
O especialista em nutrição português Pedro Bastos tem sido uma figura ativa na tentativa de mostrar que o leite não é a melhor opção de alimento para o ser humano. Já teve oportunidade de apresentar o seu trabalho além-fronteiras e um dos pontos a que o investigador dá ênfase é precisamente a relação que outros países têm com o consumo de leite. O Japão, por exemplo, é citado como país onde as taxas de obesidade, osteoporose e até cancro são mais baixas e o consumo de lacticínios é baixo, comparativamente a Europa e EUA.
No seu trabalho, Pedro Bastos realça que foi só há alguns milhares de anos que o leite e os produtos lácteos entraram na nossa dieta. A partir da análise de registos fósseis, Bastos percebeu também que os nossos antepassados do homem, que deixavam de beber leite logo após o período de amamentação, possuíam uma densidade mineral óssea comparável à dos adultos atuais. Afinal de contas, o leite seria assim tão vantajoso?
Importava por isso perceber tanto os benefícios como os possíveis efeitos adversos do consumo e leite. Alguns estudos referem que casos de diabetes ou de obesidade são o tipo de situações em que o consumo de leite pode ser desfavorável. Há até quem questione se não se devem procurar outras fontes de cálcio quando há risco de osteoporose, já que o leite é muito mais do que uma dose concentrada de cálcio.
Sobre isto, convém ter em conta que o leite é um alimento particularmente orientado para a fase de infância. No período neonatal, quando a produção endógena de hormonas é mais baixa, o leite surge como um alimento que facilita o crescimento. Para além de fornecer cálcio o leite possui proteínas, lípidos, hidratos de carbono, vitaminas e minerais, além de servir como estimulante hormonal, suprindo assim as mais diversas necessidades nutritivas nesta fase inicial da nossa vida.
À medida que crescemos, continuamos a precisar de cálcio, continuamos a poder beneficiar do valor proteico e vitamínico do leite, mas a nossa produção endógena de hormonas mudou. E é aqui que podemos falar numa preocupação dos especialistas em nutrição, uma que de certa maneira extravasa o leite.
Quem mudou? Nós ou o leite?
Desde a revolução industrial que os níveis de produção têm aumentado. Isto acontece nas mais diversas indústrias e a indústria alimentar não é exceção. No caso do leite, o que se tem notado ao longo do século XX é uma concentração cada vez maior de hormonas.
Muito mudou desde o primeiro processo de pasteurização, na segunda metade do século XIX. Hoje em dia, as vacas, o nosso principal fornecedor de leite, crescem cada vez mais rápido e são ordenhadas durante mais tempo, ao longo do ano. Catarina Cunha dá destaque a esta questão, que talvez até diga mais sobre uma certa parte da indústria alimentar do que do próprio leite. "A qualidade do leite tem vindo a sofrer uma grande alteração ao longo dos anos e isso tem origem na qualidade da alimentação bovina, assim como na própria qualidade da carne". Não sendo caso para nos deixar alarmistas, está visto que não precisamos de nos sentir desarmados. Como devemos, então, proceder?
A nutricionista Catarina Cunha adianta que "podemos recorrer a outras fontes de cálcio na nossa dieta mediterrânica tais como brócolos, os frutos secos tais como as amêndoas, sardinhas, queijos, iogurtes e não esquecendo todos os vegetais com folha verde escura tal como a nossa famosa couve-galega que também é rica em vitamina K, importante na prevenção de depósito de cálcio nas artérias". E acrescenta ainda que "o leite de amêndoa, aveia, arroz e kefir também são algumas das alternativas a quem apresenta intolerância á lactose". Mas falta aqui um elemento que não devemos descurar.
"Como é que o cálcio é absorvido no nosso organismo?", pergunta-nos a nutricionista. "A chave reside na vitamina D" – responde a própria.
A vitamina D é um elemento a ter em conta quando falamos de leite. É que não estão aqui apenas em causa as quantidades de cálcio ingeridas. Estas têm de ser devidamente absorvidas pelo nosso organismo para podermos beneficiar do cálcio. E esta vitamina em particular é uma ajuda essencial na absorção de cálcio.
A insuficiência de vitamina D leva a uma aceleração do envelhecimento ósseo. Existem alimentos que nos podem ajudar a este respeito, como é o caso do salmão, mas também da cavala, da sardinha, da enguia ou dos ovos (já agora, o tal óleo de fígado de bacalhau também pode ser uma ajuda neste aspecto, ainda que bem nada saborosa para a maioria dos paladares). Um especialista em nutrição pode também aconselhar sobre algum suplemento vitamínico. Mas num país como Portugal, a melhor solução durante boa parte do ano é também a mais barata: uma exposição solar moderada.
O mais importante a reter é que uma alimentação equilibrada, e acompanhada por hábitos de vida saudáveis, que incluam a prática regular de exercício físico, garante-nos os nutrientes necessários para não nos sentirmos dependentes do leite.
Mas "se é uma daquelas pessoas que se não prescinde de leite e não é intolerante, o recomendado é um copo por dia, que contem cerca de 300 mg de cálcio", conclui a nutricionista Catarina Cunha.
Alergia e intolerância
O imunoalergologista Manuel Branco Ferreira, no seu livro o ABC das AlergiasLINK, explica-nos que a alergia ao leite de vaca é mais prevalecente em crianças e que tende a ser transitória, embora nos últimos anos tenham sido descritos mais casos de persistência em adolescentes.
No mesmo livro, o imunoalergologista adianta ainda que atualmente já foram identificadas alergias a mais de 170 alimentos diferentes. Há relativamente poucos alimentos responsáveis por quadros de alergia alimentar grave – mas o leite de vaca é um deles, sendo que em casos particularmente extremos umas poucas gotas de leite ingeridas “podem ser fatais em doentes altamente sensibilizados”.
À medida que envelhecemos, vamos perdendo a lactase (a enzima responsável pela degradação da lactose do leite) e vamos ficando cada vez mais "intolerantes" à lactose. Neste caso falamos simplesmente de um determinado grau de intolerância. Pode sentir-se algum desconforto, gases ou possivelmente diarreia. Em caso de dúvida, procure o apoio de um especialista para definir como pode proceder.
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