segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Há uma guerra na fase silenciosa da infecção do parasita da malária

Texto de Nicolau Ferreira publicado pelo jornal Público em 23/12/2013
Cientistas portugueses descobriram, em ratinhos, que metade dos parasitas é morta no fígado pelo sistema imunitário. Mecanismo pode ajudar a produzir uma vacina eficaz.
Uma célula do fígado infectada com os parasitas a verde (ao meio da imagem), com um aglomerado de células do sistema imunitário à sua volta
Janeiro de 1948 ainda não tinha terminado quando uma descoberta revelou uma peça do puzzle da infecção da malária. Já tinham passado quase 70 anos desde que o francês Charles Laveran observara pela primeira vez parasitas da malária no sangue humano, pelo que no final da década de 1940 era um dado adquirido de que o parasita se transmitia pela picada de mosquitos e que infectava os glóbulos vermelhos. Mas entre a picada e a infecção no sangue havia um período de dez dias que o parasita desaparecia em combate.
 
“Os últimos resultados obtidos por nós na malária de macacos, [para o parasita] Plasmodium cynomolgi, foram impressionantes e, pensamos nós, inequívocos”, arrancava o artigo na Nature de 24 de Janeiro de 1948, escrito pelos parasitólogos ingleses Henry Shortt e Cyril Garnham, no qual descreveram que é no fígado que ocorre esta “fase silenciosa” do ciclo, como lhe chama a investigadora portuguesa Maria Mota.
 
Nas décadas seguintes pensava-se que na fase hepática “o parasita não era reconhecido pelo hospedeiro”, explica ao PÚBLICO Maria Mota, especialista em malária, líder de uma equipa no Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa, e Prémio Pessoa 2013 pelo seu trabalho. Mas tal não é verdade: 55 anos depois da descoberta publicada na Nature, a equipa de Maria Mota mostra agora, em ratinhos, que o sistema imunitário detecta a presença dos parasitas logo no fígado e mata cerca de metade.
Há, por isso, uma guerra, essa sim silenciosa, no início da infecção, conclui o artigo da equipa de Maria Mota na última edição da revista Nature Medicine.
 
Hoje conhecem-se melhor os parasitas da malária que causam infecções nos humanos. Há quatro espécies do género Plasmodium responsáveis pela doença no mundo. De todas, o Plasmodium falciparum é o pior, causando a maior parte das cerca de um milhão de mortes anuais.
 
É a fêmea do mosquito anófeles que injecta os parasitas da malária nas pessoas. Já no sangue, os parasitas dirigem-se para o fígado, onde penetram algumas células até, cada um, se instalar finalmente numa delas (em hepatócitos). Na célula, o parasita protege-se e fica dentro de uma vesícula chamada “vacúolo”. Assim, está protegido mas mantém-se em contacto com o ambiente exterior.
 
Nos dias seguintes, vai sugando nutrientes do hepatócito e multiplica-se, originando milhares de parasitas. Estes, com uma forma diferente, libertam-se do hepatócito e vão para a corrente sanguínea infectar glóbulos vermelhos. Nesta fase, quando os parasitas voltam a multiplicar-se e rebentam com as células do sangue, os sintomas da malária aparecem: febre alta, tremores, dores. O ciclo de infecção no sangue continua, com novos glóbulos vermelhos infectados e mortos. Mas alguns dos novos parasitas que nascem têm uma forma diferente e, se forem absorvidos pelos anófeles, podem reproduzir-se no mosquito, que é o hospedeiro principal, dando lugar a uma nova geração de parasitas.
 
Onda inflamatória
Pensava-se que durante a fase do fígado, o sistema imunitário não detectava o parasita. Mas em experiências passadas detectaram-se células do sistema imunitário no fígado de ratinhos infectados pelo parasita. Além disso, observou-se também em testes com ratinhos, alterados geneticamente para não produzirem uma proteína muito importante para o desenvolvimento da malária — a heme-oxigenase-1 —, que a fase de infecção no fígado é, neste caso, logo bloqueada devido a uma resposta inflamatória agressiva. O parasita é morto e a infecção pára aqui, o que demonstra que o sistema imunitário do hospedeiro consegue atacar o agressor na primeira fase da infecção.
 
Por isso, os investigadores foram tentar compreender que resposta inflamatória era essa. Descobriram que, de facto, existia. “O hospedeiro detecta e é capaz de matar os parasitas”, explica Maria Mota.
 
A equipa começou por comparar a actividade genética em ratinhos que eram infectados com o parasita Plasmodium berghei — que causa malária nestes roedores — e ratinhos que não o eram. E viu que os hospedeiros infectados com os parasitas activavam muitos genes relacionados com a resposta inflamatória.
 
Depois, os cientistas verificaram que o ARN do parasita, um ácido nucleico parecido com o ADN, era responsável pela activação de um sensor que iniciava a resposta inflamatória na própria célula do fígado onde o parasita se encontrava. “Descobrimos qual é o sensor que acciona o alarme”, diz Maria Mota.
 
Com a activação desse sensor, a célula do fígado infectada liberta moléculas inflamatórias importantes, os interferões. Estes interferões activam uma cascata celular inflamatória semelhante nos hepatócitos à volta da célula infectada pelo parasita, apesar de estes hepatócitos em redor não estarem infectados com o Plasmodium. Esta resposta inflamatória continua e acaba por se propagar “como uma onda” pelo fígado, diz Maria Mota.
 
O resultado desta onda é o chamamento de glóbulos brancos que acabam por se dirigir para o fígado e matam parte das células infectadas com o parasita.
 
Há muitas perguntas que ficam por responder sobre esta sequência de acontecimentos, diz Maria Mota. Não se sabe como os leucócitos detectam os hepatócitos com o parasita, nem por que razão os parasitas, dentro dos hepatócitos, começam por mostrar o seu ARN à célula hospedeira, provocando a resposta imunitária.
 
Em ratinhos, o ataque do sistema imunitário tem consequências, matando metade dos parasitas no fígado — o que faz com que muitos menos parasitas vão para o sangue continuar a infecção. Mas também não se sabe por que é que a outra metade sobreviveu à resposta imunitária no fígado.
 
Há outro dado curioso. Quando a equipa induziu uma resposta inflamatória nos ratinhos duas horas antes de os infectar com o parasita, a resposta imunitária no fígado foi muito mais forte, e cerca de 99% dos parasitas não sobreviveu à fase de infecção nos hepatócitos. Segundo Maria Mota, estas observações indicam que este método pode servir como “um adjuvante para uma potencial vacina da malária”. Isto permitiria reduzir o número de doses de uma vacina tão ambicionada, já que as vacinas que se testaram em fases experimentais só resultaram quando eram aplicadas várias vezes.

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