A castanho, o parasita da doença do sono (em tecidos de ratinhos), ao lado dos núcleos de células da gordura (a azul) e dos ses sacos de lípidos (a bolas brancas). |
Luísa Figueiredo, coordenadora da equipa que fez a descoberta sobre o parasita da doença do sono. |
Para a Organização mundial da Saúde (OMS), é uma das doenças
tropicais negligenciadas, doenças que atingem populações pobres em
África, na Ásia e na América latina e que dificilmente têm acesso a
tratamentos e formas de prevenção. Esta de que falamos ocorre em vários
países da África subsariana onde há moscas tsé-tsé que transmitem o
parasita que a provoca – o Trypanosoma brucei –, através de
picadas. Põe em risco 65 milhões de pessoas. Pensava-se que o parasita
da doença do sono, na infecção nos mamíferos (nós incluídos), usava como
reservatórios principais o sangue e, mais tarde, o cérebro, onde
origina sintomas neurológicos como um estado permanente de sonolência e
apatia. Quase sempre os doentes sem tratamento entram em coma e morrem.
Agora, uma equipa portuguesa descobriu que o reservatório principal do
parasita é outro: o tecido adiposo, ou seja, vive entre as células da
gordura.
A equipa coordenada por Luísa Figueiredo, do Instituto de
Medicina Molecular de Lisboa (IMM), fez este anúncio na última edição
da revista Cell Host & Microbe. Na realidade, o artigo
científico – que tem como autoras principais Sandra Trindade e Filipa
Rijo Ferreira, também do IMM – relata duas descobertas em relação ao
parasita da doença do sono, ou tripanossomíase humana africana, e que
poderão traduzir-se em formas mais eficazes de combate a esta infecção.
Eis
a primeira descoberta, nas palavras de Luísa Figueiredo: “Antes do
nosso estudo, pensava-se que os parasitas da doença do sono se
encontravam principalmente no sangue e alguns no cérebro. O que nós
descobrimos é que há um tecido em que um enorme número de parasitas da
doença do sono se esconde. É o tecido adiposo. A ‘enorme’ quantidade
significa que há muitos mais parasitas no tecido adiposo do que no
sangue.”
Assim, os espaços entre as células da gordura
(adipócitos) são, afinal, o principal esconderijo dos parasitas. Estas
são aquelas células que têm sacos de lípidos: quando engordamos, estes
sacos são maiores do que quando somos magos. Se antes se pensava que o
parasita existia em grande quantidade no sangue e em menos quantidade no
cérebro, os novos resultados vêm alterar esta ideia. E podem explicar a
enorme perda de peso que costuma estar associada a esta doença.
Assim,
na primeira fase da infecção nos mamíferos, o parasita está no sangue e
nas zonas entre as células da gordura mais ou menos simultâneo e, numa
segunda fase, chega ao cérebro e a outros órgãos. “Mesmo na segunda
fase, onde de facto os parasitas estão no cérebro, no coração e nos
pulmões, há mais parasitas no tecido adiposo, seguido do sangue.”
O
outro avanço: “A segunda descoberta é que os parasitas que se encontram
no tecido adiposo são bastante diferentes dos do sangue”, explica Luísa
Figueiredo. “Antes do nosso artigo, a comunidade científica pensava que
parasitas no sangue e no cérebro eram iguais. Os nossos resultados
mostram que os parasitas se adaptam aos tecidos, por isso é que os
parasitas no tecido adiposo e no sangue são muito diferentes. O que nos
pode levar a questionar se os parasitas do cérebro também serão
diferentes. Isso é que ainda não sabemos.”
E que diferenças são
essas? As experiências da equipa, em ratinhos, revelaram que os
parasitas obtêm a energia de que necessitam de maneiras distintas,
conforme os tecidos onde estão. Os parasitas do sangue obtêm-na apenas
de açúcares, enquanto os que se alojam entre as células da gordura usam
também os lípidos como fonte de energia. Para sobreviverem no sangue ou
na gordura, há mudanças no programa genético. Têm activos genes
distintos.
Diga-se ainda que, na molécula de ADN, os genes são instruções
de fabrico de proteínas. Essas instruções são “lidas” e “traduzidas” por
outra molécula – o ARN –, para que a maquinaria da célula possa
fabricar essas proteínas com determinadas funções no organismo. “Quando
há mais ARN de um gene, diz-se que esse gene está mais activo”, explica
Luísa Figueiredo. Se determinados genes estiverem activos nos parasitas,
então há mais ARN desses genes, que por sua vez significa que há mais
proteínas cujo fabrico foi comandado por esses genes. Estará portanto a
ser desempenhada uma nova função no organismo.
Foi precisamente
através da análise do ARN que equipa conseguiu descobrir que os
parasitas do sangue e da gordura eram diferentes. “Tivemos que arranjar
uma estratégia que nos desse uma perspectiva global”, conta a
investigadora. “Como as proteínas são o resultado da tradução de
moléculas de ARN, então se mostrássemos que o padrão de moléculas de ARN
era diferente poderíamos saber se as funções (e quais) eram
diferentes.” Resultado: “Encontrámos 2000 genes cujo ARN está presente
em quantidades diferentes nos parasitas do sangue e da gordura.”
Entre
os 2000 genes, a equipa verificou que havia genes do metabolismo:
“Nesta grande classe de genes, há os de uma via [bioquímica] específica,
a beta-oxidação [de ácidos gordos]. Estando activa, os parasitas do
tecido adiposo têm a capacidade de usar gordura como fonte de energia”,
acrescenta a investigadora.
O mistério das recaídas
A
existência de um reservatório do parasita desconhecido até ao momento
poderá explicar, por exemplo, as recaídas de alguns doentes tratados no
início da infecção e que, segundo as análises clínicas, já estavam
livres dos parasitas no sangue. “Perante isto, médicos e cientistas
questionavam-se: ‘Onde se escondem os parasitas que não foram eliminados
pelo fármaco?’”, especifica por sua vez um comunicado de imprensa do
IMM.
Segundo o site da OMS, há cinco fármacos para
eliminar o parasita: dois usados na fase em que está no sangue (e causa
sintomas pouco específicos, como dores de cabeça, febre, fraqueza, dores
nas articulações) e três, que são mais tóxicos e difíceis de
administrar, quando já está no cérebro (o sintoma mais característico
são as alterações do sono, mas também há alterações de comportamento).
“Não há números precisos da percentagem de pessoas em que o tratamento
não é eficaz. Os poucos estudos que existem apontam para cerca de 5%,
mas o verdadeiro valor pode ser muito diferente, dependente dos
fármacos, do estádio da doença, etc.”, explica Luísa Figueiredo. “É
importante relembrar que, se as pessoas não forem tratadas, morrem. A
doença do sono é mortal, com algumas poucas excepções reportadas
recentemente.”
Quando se pergunta sobre a importância destas
descobertas, a investigadora sublinha precisamente esse aspecto. “Há
fármacos que não penetram facilmente no tecido adiposo. Esta pode ser
uma das razões por que, por vezes, os tratamentos contra a doença do
sono não são eficazes”, diz. “Os próprios parasitas que residem no
tecido adiposo, por serem diferentes dos do sangue, podem ser
resistentes ao tratamento. Isto pode, mais uma vez, contribuir para o
tratamento não ser eficaz.” E acrescenta ainda: “Há um lado novo da
biologia do parasita que era totalmente desconhecido e que precisa de
ser estudado no futuro, se quisermos compreender a doença na sua
totalidade e definirmos melhores métodos de diagnóstico e tratamento.”
Existem
medicamentos capazes de eliminar o parasita do tecido adiposo? “Esses
estudos ainda não foram feitos. É um dos próximos projectos que queremos
desenvolver”, responde a investigadora, acrescentando que as
descobertas da sua equipa ajudarão ao desenvolvimento de novos
tratamentos. “Provavelmente, os fármacos devem conseguir entrar no
tecido adiposo e pelo menos eliminar a maioria dos parasitas. O problema
é se ficam lá ‘alguns’. Basta ‘poucos’ para poder voltar a causar
doença.”
Um avistamento feliz
Para além dos resultados
anunciados, esta investigação tem uma outra história. Que começou com um
acaso feliz. Os cientistas costumam empregar uma expressão de origem
anglo-saxónica para a descoberta de algo que não estavam à procura.
Serendipidade. Nessa altura, a equipa estava a investigar como é que os
parasitas afectam os ciclos do sono (o que ainda hoje não se sabe). Para
perceber quando e como chegavam ao cérebro, o órgão que controla o
sono, a equipa infectava ratinhos e observava os seus tecidos em
diferentes fases da infecção. “Estávamos a ver ao microscópio se havia
parasitas no coração, no pulmão, etc. Nesses órgãos nunca encontrávamos
muitos. Mas a gordura que envolve os órgãos estava sempre cheia de
parasitas…”, conta Luísa Figueiredo, que é especializada em
parasitologia e se interessa pelas estratégias usadas por diferentes
parasitas para escapar às nossas defesas imunitárias. “Aconteceu
totalmente por acaso [esta descoberta].”
A partir daí, Luísa
Figueiredo redireccionou o projecto de investigação que tinha em curso,
financiado com 750 mil euros, entre 2012 e 2016, pelo Instituto Médico
Howard Hughes (HHMI, na sigla em inglês), nos Estados Unidos. Sublinha
que teve total liberdade da parte do instituto norte-americano para
seguir esse caminho inesperado e ir à procura de respostas para as novas
interrogações científicas.
“Havia observações muito fortuitas e indirectas que indicavam
que talvez houvesses parasitas no tecido adiposo, mas nunca ninguém
investigou com cuidado. Até nós!”, diz a investigadora de 40 anos,
licenciada em bioquímica pela Universidade do Porto, doutorada no
Instituto Pasteur de Paris e com um pós-doutoramento na Universidade
Rockefeller, em Nova Iorque. “A melhor analogia da descoberta [dos
parasitas] no tecido adiposo é a descoberta do Brasil. Diz-se que Vasco
da Gama terá avistado o Brasil numa das suas viagens para a Índia. Foi
por acaso. Depois o Rei investiu numa outra viagem, agora liderada por
Pedro Alvares Cabral, para ir descobrir e conquistar essas terras. Nós
também fizemos primeiro uma observação por acaso. E depois, com
financiamento do HHMI, fomos investigar a fundo o que se passava.”
Vacas, camelos e pessoas
Nos
dados principais da OMS sobre a doença do sono, constata-se uma grande
evolução no seu combate nos últimos anos. Em 1998, foram relatados quase
40.000 casos, mas estimava-se que 300.000 estavam por diagnosticar e,
assim, por tratar, lê-se no site da OMS.
Em 2009, pela primeira vez em 50 anos, o número de casos relatados
baixou para menos de 10.000 (9878). “Este declínio no número de casos
continuou, com 3796 novos casos relatados em 2014, o nível mais baixo
desde o início da recolha global sistemática de dados há 75 anos”,
segundo a OMS, que desde o início de 2000 estabeleceu parcerias com
empresas farmacêuticas gratuitas de medicamentos. Também tem havido
campanhas de controlo das moscas tsé-tsé (do género Glossina) com insecticidas, o que tem ajudado a reduzir os casos em humanos.
Ainda
que a OMS inclua a distribuição actual da doença em 36 países da África
subsariana, nos últimos dez anos mais de 70% dos casos ocorreram na
República Democrática do Congo, que é o único país que actualmente
reporta mais de mil novos casos por ano. Segue-se a República Centro-Africana, que declarou entre 100 a 200 novos casos em 2014.
Entre
os países que têm menos de 100 novos casos por ano encontra-se Angola, a
par do Burkina Faso, Camarões, Chade, Costa do Marfim, Gabão, Uganda,
Tanzânia ou Zâmbia. E países como a Guiné-Bissau, Moçambique, Etiópia,
Quénia, Gana, Nigéria, Senegal ou Serra Leoa não relatam qualquer caso
há mais de uma década. “A transmissão da doença parece ter parado em
alguns destes países, mas ainda há zonas onde é difícil avaliar
exactamente a situação devido a instabilidade social e/ou acessos
difíceis que impedem as actividades de vigilância e diagnóstico.”
A
OMS tem o ano 2020 como meta para que a doença do sono deixe de ser um
problema de saúde pública. “Os números de casos têm baixado imenso, mas a
doença não está erradicada. Esse passo é sempre muito difícil de
conseguir, sobretudo em África. Logo não podemos afrouxar nas políticas
de saúde pública e na investigação”, frisa a investigadora portuguesa.
Além
disso, os parasitas que provocam a doença do sono em pessoas afectam
grandemente o gado, em particular as vacas, deixando-os escanzelados.
Nos animais, é conhecida por nagana. “Estima-se que haja 20 milhões de
cabeças de gado infectadas. É um problema com consequências económicas
terríveis, que impede o desenvolvimento da pecuária e contribui para a
pobreza das famílias”, diz Luísa Figueiredo. “No total, as doenças
causadas pelo parasita Trypanosoma em humanos e no gado na
África subsariana causam a perda de 1300 milhões de dólares por ano
[mais de 1100 milhões de euros] à economia africana. Para complicar um
pouco mais, se não tratarmos o gado, torna-se muito difícil erradicar a
doença em humanos, porque as moscas tsé-tsé picam vacas e pessoas,
transmitindo assim o parasita de um mamífero a outro.”
E agora a
equipa do IMM irá ver se as suas descobertas nos ratinhos se aplicam ao
gado e às pessoas. Já tem em andamento um projecto, em colaboração com
cientistas da Escócia e da Etiópia, para ver se também há parasitas no
tecido adiposo de outros animais e como isso afecta o tratamento. Na
Escócia, vai procurar os parasitas entre as células da gordura em vacas
infectadas de propósito, enquanto na Etiópia irá procurá-los em camelos
infectados naturalmente.
Já quanto às investigações em pessoas,
através de uma biopsia ou lipossucção para ter amostras de tecido
adiposo, a equipa portuguesa ainda está a procurar estabelecer
parcerias. “Mas vai levar tempo porque são estudos com equipas em
África, há problemas éticos, resistência das pessoas à medicina do
Ocidente… Seria óptimo se fosse em Angola.”
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