Petroleiro naufragado na Selvagem Pequena, onde está desde 1971
|
Rebentação das ondas vista debaixo de água nas Selvagens
|
No documentário, de quase meia hora, a beleza tem lugar de destaque — no azul do mar e do céu, na elegância das aves marinhas em voo, na aparente tranquilidade de peixes enormes ou no turbilhão das ondas visto dentro de água. “O projecto Mares Pristinos é sobre a preservação dos últimos lugares selvagens dos oceanos”, diz o narrador do documentário. “O que fazemos é procurar os últimos lugares imaculados dos oceanos. E protegê-los”, acrescenta o líder da expedição, Paul Rose, da equipa Mares Pristinos da National Geographic Society e da Royal Geographical Society britânica.
Lançado em 2008 por Enric Sala, explorador-residente da National Geographic Society, o Mares Pristinos pretende identificar, avaliar e proteger os últimos lugares verdadeiramente selvagens dos oceanos. Segundo o site do programa, já ajudaram a proteger mais de 3000 milhões de quilómetros quadrados de oceanos. Das Galápagos e Seychelles até a regiões a sul de Moçambique.
Quanto às Selvagens, a sua protecção “é uma história que começa com uma ave que migra pelo mar”, recorda Paul Rose no documentário, a transmitir no canal National Geographic. “Esta pequena ave acabou por proteger” as Selvagens, diz o cientista, também autor do relatório.
Essa ave marinha é a cagarra. Em 1971, as Selvagens eram propriedade privada, pertencendo ao filho do banqueiro madeirense Luiz da Rocha Machado. O Estado português comprou-as e classificou-as nesse mesmo ano como reserva natural. Ao protegerem-se as aves marinhas, de certa maneira protegeu-se o ambiente subaquático à volta da Selvagem Grande e da Selvagem Pequena. A Selvagem Grande tem agora a maior colónia mundial de cagarras. Nidificam ali, em terra firme, mais de 30.000 casais.
Mas quando as Selvagens foram compradas pelo Estado português, as cagarras estavam em declínio. Eram dizimadas. As comunidades piscatórias da Madeira, que as comiam, faziam campanhas sazonais de recolha das crias na Selvagem Grande. Salgadas e secas ao sol, eram armazenadas em barricas que iam para a ilha da Madeira. As penas vendiam-se para o fabrico de colchões, em Inglaterra. Numa campanha anual chegavam a matar-se 20 mil juvenis.
Na última, em 1967, caçaram-se “só” 13 mil cagarras. Nesse ano, o director do Museu Municipal do Funchal, Alexander Zino, comprou a licença de caça por alguns anos. Queria que colónia recuperasse e que as Selvagens fossem uma reserva natural. Em 1970, começou a negociar a sua compra pelo Fundo Mundial para a Vida Selvagem (WWF), associação internacional de defesa da natureza. O filho do banqueiro madeirense quis antes vendê-las ao Estado português.
Uma pérola no Atlântico
A criação da reserva natural permitiu atenuar algumas das cicatrizes humanas nas Selvagens. Por ano, recebem só algumas centenas de visitantes, que chegam sobretudo em iates, e a ida a terra requer autorização do Serviço do Parque Natural da Madeira. Mas ainda lá estão as marcas das tentativas de colonização ao longo da história (que falharam porque não há água doce), seja em muros de pedra no planalto da Selvagem Grande, seja numa cisterna. Os coelhos, introduzidos pouco depois da descoberta das Selvagens no século XV, pelo navegador português Diogo Gomes, só se conseguiram erradicar no início do século XX. Tal como se fizeram esforços para eliminar plantas introduzidas. No tempo dos Descobrimentos, também se levaram para lá cabras como fonte de alimento de quem visitasse estas ilhas e que a caça só exterminou no século XIX.
“Felizmente, em 1971, aquando da protecção, conseguiu-se eliminar estes factores [de desequilíbrio]”, diz Paul Rose, referindo-se às espécies introduzidas. “Foi um esforço enorme. Muita gente, muito dinheiro, muito empenho. Limparam tudo. E agora está de novo quase imaculado.”
Entre as marcas mais visíveis que perduram dos seres humanos estão navios naufragados. “Os destroços do Cerno ainda se mantêm desde 1971 no recife entre-marés na Selvagem Pequena, ameaçando este ambiente pristino. Este petroleiro de bandeira norueguesa aproximou-se de mais das ilhas para lavar ilegalmente os tanques”, lê-se no relatório da equipa dos Mares Pristinos, assinado à cabeça por Alan Friedlander, cientista principal do projecto e que esta quarta-feira apresentou o documento e o filme no Oceanário de Lisboa, numa sessão com a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, e o ministro do Ambiente, José Pedro Matos. Na terça-feira, a equipa foi ao Funchal divulgar os resultados ao presidente do Governo Regional da Madeira, Miguel Albuquerque.
“Três meses depois [do Cerno], outro petroleiro, o Morning Breeze, afundou-se na Selvagem Grande”, lembra o relatório. “É provável que destroços de navios e/ou derrames de petróleo tenham tido efeitos devastadores e a longo prazo no ecossistema marinho costeiro, em particular na zona entre-marés quase pristina.”
Já houve várias expedições científicas às Selvagens. A primeira que foi multidisciplinar, em 1963, foi organizada por Alexander Zino. E em 2010, a Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental fez a maior expedição até à data às Selvagens, envolvendo mais de 70 cientistas, para inventariar de forma exaustiva a biodiversidade marinha — trabalhos que incluíram mergulhos de biólogos até a 25 metros de profundidade e, ainda, do robô submarino Luso a 2000 metros. A expedição de 2010, frisa o relatório do Mares Pristinos, “aumentou consideravelmente a nossa compreensão científica sobre estas ilhas remotas”.
Agora os cientistas dos Mares Pristinos também quiseram ir às Selvagens “fazer o levantamento da saúde dos seus ecossistemas submarinos, da superfície às profundezas, e documentar este ecossistema em filme”, explica-se no relatório. Interessaram-se por estas ilhas a 163 milhas náuticas a sul da ilha da Madeira e 82 a norte das Canárias. As Selvagens são o extremo sul de Portugal. Não têm árvores, só vegetação rasteira. Apenas os vigilantes da natureza vivem lá.
“Os resultados desta expedição serão usados para aumentar a sensibilização pública sobre o valor extraordinário desta pérola do Atlântico e recomendar ao Governo português a ampliação da actual área marinha protegida à volta das Selvagens, que apenas abrange águas até aos 200 metros de profundidade.”
Os cientistas fizeram vários mergulhos e largaram câmaras de filmar no mar, umas para flutuar a cerca de dez metros de profundidade e outras para ir até ao fundo, a mais de 2000 metros. “Não se pretendia fazer um levantamento exaustivo, mas usar os mesmos métodos em todos os locais. Há uma padronização da metodologia, para permitir comparações. Usamos censos visuais, em que avaliamos a biomassa e a diversidade de espécies num percurso. Repetimos isso em todos os pontos de amostragem e ficamos com uma ‘fotografia’ dessa zona, que podemos comparar com ‘fotografias’ de outras zonas”, explica Emanuel Gonçalves, professor associado do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente no ISPA-Instituto Universitário (em Lisboa) e um dos autores do relatório científico. Ainda este ano, a equipa irá à ilha da Madeira fazer o mesmo tipo de trabalho, para ter um termo de comparação entre um lugar mais selvagem e outro com bastantes impactos humanos.
Pescas e plásticos
Emanuel Gonçalves explica por que razão a protecção até aos 200 metros de profundidade não é suficiente. Funciona como tampão, e aí é proibido pescar, mas à volta das ilhas depressa se atingem grandes profundidades. Por isso, a área marinha protegida acaba por não ser grande: tem 9174 hectares. A reserva natural das Selvagens inclui outros 281 hectares de área terrestre, pelo que a reserva tem um total de 9455 hectares.
“Globalmente, essa protecção funcionou. Vêem-se peixes de grande porte, como garoupas e lírios, que são os primeiros a desaparecer quando há impactos significativos”, diz ao PÚBLICO o biólogo português, que entrou nesta expedição a convite de Enric Sala. “Permitiu proteger os ecossistemas costeiros, mas não permite uma protecção significativa para espécies mais móveis.”
É esse estado de saúde global que se dá conta no relatório. “Perto da costa, encontrou-se o ecossistema saudável, com um conjunto diverso de algas que consiste em pelo menos 47 taxa [unidades de classificação] diferentes. Os desertos de ouriços-do-mar, geralmente um sinal de pesca em excesso, eram raros e só cobriam cerca de 8% do fundo”, concluiu a equipa.
Quando há ouriços-do-mar a mais, eles raspam as algas e deixam as rochas nuas, perturbando a cadeia alimentar. Os cientistas designam este fenómeno por “desertos de ouriços-do-mar”. Nas Selvagens, acrescenta-se no documentário, os ouriços-do-mar estão em equilíbrio, o que significa que há peixes que os comem em número suficiente. A presença de predadores como lírios, meros e peixes-porco são aqui um sinal de um ecossistema em bom estado. Diz-se que há uma diversidade incrível de espécies subaquáticas. “Por todo o lado, vimos grandes meros. Isto é algo que já não se vê, infelizmente, na maior parte do litoral europeu ou mesmo em ilhas vizinhas”, frisa Emanuel Gonçalves no documentário.
Mas depois vem a pergunta: e onde estão grandes caçadores, os predadores de topo da cadeia alimentar, como os tubarões? Nas Selvagens, ainda que quase intactas, eles são a peça que falta. “Vimos um só tubarão na expedição”, conta-nos Emanuel Gonçalves. “Vimos os mamíferos marinhos [como golfinhos e baleias], mas os tubarões não. Os grandes atuns também não. Não estão lá alguns componentes que se esperava que lá estivessem.”
Por isso, os cientistas defendem que os actuais 9174 hectares de área marinha protegida da reserva sejam alargados e que se use como “ponto de partida” uma Zona de Protecção Especial criada nas Selvagens em 2014 ao abrigo da directiva europeia das aves, que abrange 124.530 hectares. “A expansão da reserva natural à volta das ilhas seria uma oportunidade excelente de proteger um ecossistema único no Atlântico Norte”, frisa o relatório.
Até porque, alerta-se, subsistem ameaças às Selvagens: navios de pesca perto da reserva natural, em particular do atum; pesca ilegal na área protegida; e fragmentos minúsculos de plástico, que inundam os oceanos e são ingeridos pelos animais. “Em 85% das amostras de água recolhidas à volta das Selvagens havia microplásticos”, lê-se.
Há ainda referência ao diferendo entre Portugal (que as considera ilhas, com direito a zona económica exclusiva, até 200 milhas) e Espanha (que as vê como rochedos, só com mar territorial até 12 milhas), o que mantém aí em aberto as fronteiras marítimas dos dois países.
Ao partir das Selvagens, a equipa da National Geographic deixa uma nota de esperança. “Tem-se pescado muito, e o mar está sob grande pressão”, remata Paul Rose. “Mas temos um sentimento de confiança ao deixarmos este lugar, dada a sua condição fantástica.”
Sem comentários:
Enviar um comentário