sábado, 28 de maio de 2016

O mistério das penas vermelhas: foi um passarinho que nos contou…


 

Também existem no estado selvagem raros cardinais amarelos, provavelmente devido a mutações no gene agora descoberto.
Canário vermelho, obtido há quase 100 anos por cruzamento de canários amarelos com uma ave vermelha nativa da América do Sul.
 

À esquerda, um mandarim macho com o seu distintivo bico vermelho; à direita, um macho mutante de bico amarelo.
 
 
Os cardinais têm penas vermelhas devido a um gene que converte pigmentos amarelos vindos da dieta em pigmentos vermelhos.
 
 
Tentilhão com penas vermelhas na cabeça e no peito.

Existem no mundo mais de 10.000 espécies diferentes de aves e a diversidade da sua plumagem é espectacular. E, para além das brilhantes cores que arvoram nas suas penas, os inúmeros padrões que as penas de diversas cores formam à superfície do corpo das aves acentuam ainda mais a variedade e a beleza da sua roupagem 
De facto, as aves são os vertebrados terrestres mais coloridos que há – e só os insectos e os peixes que habitam os recifes de coral conseguem rivalizar com elas nesse pelouro.
 
Uma das cores que se pensa ter um significado particular na vida social das aves é o vermelho – não só quando surge ao nível das penas dos machos, mas também do bico e da pele (nomeadamente as patas). Muitos especialistas pensam que serve para os machos atraírem sexualmente as fêmeas – e também para afugentar os seus predadores.
 
As vestes das aves adquirem deslumbrantes tons vermelhos a partir de pigmentos amarelos, chamados carotenóides (descobertos inicialmente nas cenouras). Estes pigmentos são obtidos pelas aves exclusivamente a partir da sua alimentação, nas sementes e frutas que elas consomem ou nos insectos que ingerem e que, por sua vez, comeram esses ingredientes.
 
Um dos exemplos mais conhecidos da associação entre a dieta e a cor das penas das aves é o dos flamingos, que devem a sua cor característica ao facto de comerem camarões, que por sua vez ingeriram carotenóides. Mude-se a dieta e rapidamente os flamingos perdem a sua bela cor viva.
 
Porém, até aqui, embora se soubesse que algumas aves vermelhas possuem a capacidade de sintetizar carotenóides vermelhos a partir de carotenóides amarelos, o mecanismo biológico por detrás deste fenómeno permanecia um enigma.
 
Mas agora, duas equipas internacionais, em trabalhos independentes, identificaram pela primeira vez os genes que tornam possível essa transformação química da cor dos pigmentos e a sua incorporação nas penas das aves. Os estudos, um dos quais foi coordenado pelo cientista português Miguel Carneiro, do CIBIO-InBIO, na Universidade do Porto, acabam de ser publicados na revista Current Biology.
Pintadinho-de-peito-vermelho, uma ave originária da África subsariana Staffan Andersson
“Para produzir penas vermelhas, as aves convertem pigmentos alimentares amarelos em pigmentos vermelhos e a seguir depositam-nos nas penas”, explica Miguel Carneiro em comunicado da editora daquela revista. “E nós descobrimos um gene que codifica uma enzima que permite essa conversão de amarelo para vermelho nas aves.”
 
Canários vermelhos
Miguel Carneiro, Ricardo Jorge Lopes e José Melo Ferreira, investigadores do CIBIO-InBIO – em colaboração com as equipas de Geoffrey Hill, da Universidade de Auburn, e Joseph Corbo, da Universidade de Washington (ambas nos EUA) –, compararam para isso o genoma de três tipos de aves: o canário vermelho (criado artificialmente), o vulgar canário amarelo e o chamado cardinalito da Venezuela, também vermelho, explica um comunicado do CIBIO-InBIO.
 
O canário vermelho existe há pouco menos de 100 anos e foi obtido por selecção a partir de cruzamentos entre canários amarelos e cardinalitos da Venezuela, lê-se ainda neste documento. E o que a equipa fez foi comparar os respectivos genomas destas três aves de forma a localizar a parte do ADN do canário vermelho que provinha do cardinalito da Venezuela “ancestral” – e que devia portanto ser responsável pela cor vermelha destes canários.
 
Foi assim que a equipa identificou duas regiões genéticas relevantes. Uma delas contém um gene, designado CYP2J19, que, ao que tudo indica, comanda o fabrico de uma enzima (uma proteína) que, por sua vez, permite a conversão dos pigmentos amarelos em vermelhos. O facto de esta enzima estar presente em grandes quantidades na pele dos canários vermelhos sugere fortemente que o CYP2J19 é responsável pela coloração vermelha das penas destas aves.
 
De facto, o gene em causa não é o exclusivo das aves vermelhas. Nos canários amarelos, também está activo (produz a enzima), mas apenas na retina dos olhos. Já nos canários vermelhos, o gene está activado na pele, nas penas e no fígado, para além da retina.
 
“Há duas descobertas surpreendentes no nosso estudo”, refere Miguel Carneiro no comunicado do CIBIO-InBIO. “Primeiro, verificámos que o gene (CYP2J19), necessário para que as aves possam ter penas vermelhas, está presente em todos os genomas de aves diurnas, não só nas aves com penas vermelhas”.
 
Na retina (que é o local onde o gene está activo em todas as aves), pensa-se que serve para gerar moléculas vermelhas que agem como filtros de luz para melhorar a visão de cores das aves. (Diga-se já agora que as aves são capazes de ver uma variedade de cores muito superior aos mamíferos.) “E, nas aves com penas vermelhas”, acrescenta Miguel Carneiro, “este gene também é utilizado para produzir as penas vermelhas.”
 
Isto sugere, segundo o investigador, “que a maioria das aves tem a capacidade latente de produzir penas vermelhas, mas para isso acontecer é necessária a evolução de mecanismos ao nível da regulação dos genes que permitam utilizar este gene também nas penas”.
 
Quanto à segunda surpresa, diz ainda Miguel Carneiro, “é que também é necessária a presença de um outro gene para promover o crescimento das penas vermelhas. Mas ainda não sabemos como este gene interage com o gene CYP2J19 para permitir que as penas cresçam vermelhas”.
 
O próximo passo dos cientistas consistirá em descobrir as regiões do ADN que são responsáveis pela activação do gene CYP2J19 na pele dos canários vermelhos e, a seguir, em determinar se se trata de um mecanismo comum à maioria das espécies de aves vermelhas.
 
Em particular, o co-autor Joseph Corbo, citado em comunicado da sua universidade, quer estudar o genoma do cardinal amarelo, uma ave muito rara (os cardinais costumam ser, justamente, vermelhos). “Pensamos que se trata de uma mutação rara que torna o animal incapaz de produzir o carotenóide vermelho.” Os cientistas já estão à procura de mutações numa pequena amostra de tecido de cardinal amarelo proveniente de um museu.
 
Bicos amarelos
No outro estudo agora publicado, e que deu resultados semelhantes via uma abordagem diferente, as equipas de Nick Mundy, da Universidade de Cambridge, e Jessica Stapley, da Universidade de Sheffield (ambas no Reino Unido), e de Staffan Andersson, da Universidade de Gotemburgo (Suécia), viraram-se para aves totalmente diferentes: os mandarins. No estado selvagem, os machos destas aves têm o bico vermelho, mas existem mutantes, criados no laboratório, com o bico amarelo, explica um comunicado da Universidade de Cambridge. Também estas aves vão buscar os carotenóides amarelos à sua dieta para gerar a cor vermelha.
 
Quando compararam os genomas destes dois tipos de aves, os cientistas identificaram um grupo de três genes, nas aves selvagens, que tinham desaparecido ou se encontravam mutados nas aves de bico amarelo. Os genes codificavam enzimas ditas do citocromo P450. Já agora, a enzima fabricada pelo gene CYP2J19, descoberto pela outra equipa, também pertence à grande família das enzimas do citocromo P450 – mostrando que os resultados apontam efectivamente na mesma direcção.
 
Também estes autores observaram que um ou vários destes três genes se encontravam activados nos tecidos onde os pigmentos vermelhos estavam depositados: no bico, na parte superior dos pés – e ainda, como era de esperar, na retina.
 
Para Nick Mundy, o inédito elo agora descoberto entre os bicos vermelhos e as penas, por um lado, e a retina, por outro (as localizações das enzimas activas são semelhantes às do outro estudo) sugere que a capacidade de produzir pigmentos vermelhos começou por servir para a visão das cores antes de se tornar um atributo ornamental das aves. Em todo o caso, eis um belo exemplo da parcimónia da natureza: “Ficámos espantados pelo facto de os mesmos genes estarem envolvidos na visão das cores vermelhas [nos olhos] e na produção da coloração vermelha [nas penas e nos bicos]”, salienta Nick Mundy.
 
Por outro lado, as enzimas do citocromo P450 são, em particular, conhecidas pelo seu importante papel, no fígado dos vertebrados, na destruição e metabolização de compostos tóxicos, lê-se ainda no comunicado de Cambridge. Ora, este elo entre a cor vermelha e a "destoxificação hepática" também representa um importante resultado para estes cientistas.
 
É que, apesar de muitos especialistas suporem, como já foi referido, que o vermelho do bico, das penas ou das patas nos machos das aves é particularmente atraente para as fêmeas – conferindo portanto aos machos uma vantagem reprodutiva –, ninguém sabe por que é que isso acontece. E mais: será este um sinal “honesto” de uma qualquer superioridade biológica do macho – ou, pelo contrário, um engodo, destinado simplesmente a garantir a esse macho um maior sucesso junto das suas as potenciais parceiras, mas sem qualquer vantagem para a sua prole?
 
O co-autor Staffan Andersson comenta a este propósito: “Os nossos resultados, que ligam um gene de destoxificação ao metabolismo dos carotenóides, trazem novos elementos à velha hipótese da chamada ‘sinalização honesta’”. E de facto, se a cor vermelha for mesmo sinal de que os genes de destoxificação do macho progenitor são particularmente eficientes, isso constitui sem dúvida uma vantagem não apenas para ele, mas para toda a sua descendência.

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