Artigo de Ana
Gerschenfeld publicado pelo jornal Público, em 06/09/2012
Uma década após a leitura integral das “letras” que compõem o ADN humano,
são hoje apresentados os primeiros resultados globais do projecto que se
seguiu, o ENCODE, com o objectivo de perceber como é que o genoma humano faz,
concretamente, para gerar a nossa complexidade biológica (e, quando algo corre
mal, causar doenças).
Os cerca de 20.000 genes que permitem fabricar todas as proteínas do nosso
organismo ocupam apenas 2% da molécula de ADN humano. E o resto? O que fazem as
carradas de “letras” de código genético situadas entre os genes propriamente ditos?
Até agora, a ideia mais geralmente aceite era a de que se tratava sobretudo de “ADN-lixo”,
feito de sequências genéticas que na sua maioria não serviam para nada.
Mas o panorama que pintam os mais de 30 artigos hoje tornados públicos pelo
consórcio internacional ENCODE (Enciclopédia de Elementos de ADN) nas revistas Nature,
Science, Genome Biology, Genome Research, Cell e
outras (e acessíveis online a todos em www.nature.com/encode) é radicalmente
oposto.
Em particular, nesses 98% do genoma que não codificam proteínas, os cientistas
encontraram agora milhões de “interruptores” que servem para ligar e desligar
os genes conforme o tipo de célula (em cujo núcleo o ADN está alojado) e da
fase do desenvolvimento dos órgãos e tecidos.
Por outras palavras, escondido no ADN, dissimulado entre os genes até agora
considerados “nobres”, por assim dizer – os genes que fabricam proteínas –, há
todo um megapainel de controlo, distribuído por toda a extensão do genoma, que
dita quando, onde e em que quantidades os genes “nobres” devem fabricar essas proteínas.
Sem esses controlos, sem esses elementos reguladores da actividade genética, os
nossos 20 mil genes não mais seriam do que fragmentos inertes. E também não
serviriam para nada...
“O nosso genoma está verdadeiramente pejado de ‘interruptores’”, diz em
comunicado Ewan Birney, do Laboratório Europeu de Biologia Molecular –
Instituto Europeu de Bioinformática, no Reino Unido, um dos principais
coordenadores do projecto ENCODE. “Conseguimos ver que cerca de 80% do genoma está
activamente a fazer qualquer coisa (...) e está de facto envolvido no controlo
de onde e quando as proteínas são produzidas e não apenas no seu fabrico.”
Este primeiro mapa dos bocadinhos de ADN que, apesar de não fabricarem nada,
estão activos e são essenciais à execução do programa genético contido no nosso
genoma, é o fruto de cinco anos de trabalho de centenas de cientistas
(incluindo portugueses) em dezenas de instituições no mundo inteiro, que
juntaram os seus esforços com o objectivo, justamente, de perceber como o
genoma faz para, a partir da sua sequência de “letras” de base, gerar a nossa
complexidade biológica.
Acção à distância
Utilizando as mais poderosas técnicas de sequenciação genética, aliadas a
potentes programas informáticos, os investigadores conseguiram de facto começar
a detectar
uma ordem subjacente no caos que aparentemente reina nas regiões do ADN
situadas entre os genes, nessa gigantesca sopa de letras que até aqui parecia
não fazer sentido. O mapeamento dos “interruptores” de que fala Birney foi
realizado com base em várias centenas de amostras biológicas, incluindo mais de
uma centena de tipos celulares diferentes dos principais órgãos e tecidos humanos,
em diversas fases do seu desenvolvimento.
Os cientistas descobriram assim quase três milhões de “interruptores”. E
também puderam constatar que apenas uma pequena fracção deles – à volta de 200
mil – estava activa num dado tipo de célula; e que o conjunto de interruptores
activados numa dada célula era quase totalmente específico do tipo da célula.
Como se de “um código de barras da identidade da célula” se tratasse, lê-se
num comunicado da Universidade de Washington, onde trabalha uma das equipas do
ENCODE.
Para mais, e ao contrário do que se pensava até aqui, os resultados também
mostram que os interruptores podem estar situados a grande distância dos seus
genes-alvo – até, mesmo, num cromossoma diferente. De facto, começa-se a
vislumbrar a estrutura da complexa rede de interacções genéticas que estão
constantemente a acontecer no genoma.
Isso poderá ter implicações fundamentais na compreensão das causas genéticas
de doenças humanas complexas. “A maior parte dos esforços de mapeamento das
causas genéticas de doenças tem sido frustrada por resultados que apontavam
para locais do ADN distantes dos genes”, diz John Stamatoyannopoulos, co-autor
da Universidade de Washington, noutro comunicado daquela instituição. “Agora
sabemos que esses esforços não foram feitos em vão e que os sinais estavam de
facto a apontar para o ‘sistema operativo’ do genoma – ou seja, para instruções
que estão escondidas em milhões de pontos do genoma. Os resultados fornecem-nos
uma nova lente para olhar para o papel da genética e do funcionamento do genoma
na doença.”
O que vem a seguir? Desafi os ainda maiores, escreve Joseph Ecker, do Instituto
Salk, nos EUA, num comentário que acompanha os seis artigos publicados na Nature.
Tais como desenvolver novas técnicas que permitam captar “os aspectos dinâmicos
da regulação genética” ao longo do tempo e em grandes quantidades de células ao
mesmo tempo. Ou ainda perceber “como os ingredientes do genoma se combinam
(...) para desempenhar as funções complexas que permitem o desenvolvimento dos
órgãos e dos tecidos”. E, last but not least, como ligar essa
crescente e maciça quantidade de dados genéticos às suas manifestações físicas,
normais ou patológicas, em cada um de nós.”
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