sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Projecto ENCODE -Vem aí uma nova era da genética


Artigo de Ana Gerschenfeld publicado pelo jornal Público, em 06/09/2012

 "Dois por cento do nosso ADN são genes, o resto é um gigantesco painel de controlo dos genes. A julgar pelas descobertas agora anunciadas, pode vir aí uma revolução genética e biomédica
 
Uma década após a leitura integral das “letras” que compõem o ADN humano, são hoje apresentados os primeiros resultados globais do projecto que se seguiu, o ENCODE, com o objectivo de perceber como é que o genoma humano faz, concretamente, para gerar a nossa complexidade biológica (e, quando algo corre mal, causar doenças).

Os cerca de 20.000 genes que permitem fabricar todas as proteínas do nosso organismo ocupam apenas 2% da molécula de ADN humano. E o resto? O que fazem as carradas de “letras” de código genético situadas entre os genes propriamente ditos? Até agora, a ideia mais geralmente aceite era a de que se tratava sobretudo de “ADN-lixo”, feito de sequências genéticas que na sua maioria não serviam para nada.

Mas o panorama que pintam os mais de 30 artigos hoje tornados públicos pelo consórcio internacional ENCODE (Enciclopédia de Elementos de ADN) nas revistas Nature, Science, Genome Biology, Genome Research, Cell e outras (e acessíveis online a todos em www.nature.com/encode) é radicalmente oposto.

Em particular, nesses 98% do genoma que não codificam proteínas, os cientistas encontraram agora milhões de “interruptores” que servem para ligar e desligar os genes conforme o tipo de célula (em cujo núcleo o ADN está alojado) e da fase do desenvolvimento dos órgãos e tecidos.

Por outras palavras, escondido no ADN, dissimulado entre os genes até agora considerados “nobres”, por assim dizer – os genes que fabricam proteínas –, há todo um megapainel de controlo, distribuído por toda a extensão do genoma, que dita quando, onde e em que quantidades os genes “nobres” devem fabricar essas proteínas. Sem esses controlos, sem esses elementos reguladores da actividade genética, os nossos 20 mil genes não mais seriam do que fragmentos inertes. E também não serviriam para nada...

“O nosso genoma está verdadeiramente pejado de ‘interruptores’”, diz em comunicado Ewan Birney, do Laboratório Europeu de Biologia Molecular – Instituto Europeu de Bioinformática, no Reino Unido, um dos principais coordenadores do projecto ENCODE. “Conseguimos ver que cerca de 80% do genoma está activamente a fazer qualquer coisa (...) e está de facto envolvido no controlo de onde e quando as proteínas são produzidas e não apenas no seu fabrico.”

Este primeiro mapa dos bocadinhos de ADN que, apesar de não fabricarem nada, estão activos e são essenciais à execução do programa genético contido no nosso genoma, é o fruto de cinco anos de trabalho de centenas de cientistas (incluindo portugueses) em dezenas de instituições no mundo inteiro, que juntaram os seus esforços com o objectivo, justamente, de perceber como o genoma faz para, a partir da sua sequência de “letras” de base, gerar a nossa complexidade biológica.

Acção à distância

Utilizando as mais poderosas técnicas de sequenciação genética, aliadas a potentes programas informáticos, os investigadores conseguiram de facto começar a detectar

uma ordem subjacente no caos que aparentemente reina nas regiões do ADN situadas entre os genes, nessa gigantesca sopa de letras que até aqui parecia não fazer sentido. O mapeamento dos “interruptores” de que fala Birney foi realizado com base em várias centenas de amostras biológicas, incluindo mais de uma centena de tipos celulares diferentes dos principais órgãos e tecidos humanos, em diversas fases do seu desenvolvimento.

Os cientistas descobriram assim quase três milhões de “interruptores”. E também puderam constatar que apenas uma pequena fracção deles – à volta de 200 mil – estava activa num dado tipo de célula; e que o conjunto de interruptores activados numa dada célula era quase totalmente específico do tipo da célula.

Como se de “um código de barras da identidade da célula” se tratasse, lê-se num comunicado da Universidade de Washington, onde trabalha uma das equipas do ENCODE.

Para mais, e ao contrário do que se pensava até aqui, os resultados também mostram que os interruptores podem estar situados a grande distância dos seus genes-alvo – até, mesmo, num cromossoma diferente. De facto, começa-se a vislumbrar a estrutura da complexa rede de interacções genéticas que estão constantemente a acontecer no genoma.

Isso poderá ter implicações fundamentais na compreensão das causas genéticas de doenças humanas complexas. “A maior parte dos esforços de mapeamento das causas genéticas de doenças tem sido frustrada por resultados que apontavam para locais do ADN distantes dos genes”, diz John Stamatoyannopoulos, co-autor da Universidade de Washington, noutro comunicado daquela instituição. “Agora sabemos que esses esforços não foram feitos em vão e que os sinais estavam de facto a apontar para o ‘sistema operativo’ do genoma – ou seja, para instruções que estão escondidas em milhões de pontos do genoma. Os resultados fornecem-nos uma nova lente para olhar para o papel da genética e do funcionamento do genoma na doença.”

O que vem a seguir? Desafi os ainda maiores, escreve Joseph Ecker, do Instituto Salk, nos EUA, num comentário que acompanha os seis artigos publicados na Nature. Tais como desenvolver novas técnicas que permitam captar “os aspectos dinâmicos da regulação genética” ao longo do tempo e em grandes quantidades de células ao mesmo tempo. Ou ainda perceber “como os ingredientes do genoma se combinam (...) para desempenhar as funções complexas que permitem o desenvolvimento dos órgãos e dos tecidos”. E, last but not least, como ligar essa crescente e maciça quantidade de dados genéticos às suas manifestações físicas, normais ou patológicas, em cada um de nós.”

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