Os dois laureados deste ano lideraram duas gigantescas experiências de detecção de neutrinos – as partículas mais esquivas do Universo –, resolvendo um grande enigma da física e mostrando ao mesmo tempo que os neutrinos têm massa.
O anúncio foi feito na manhã desta terça-feira |
Detector de neutrinos Super-Kamiokande, no Japão |
O Prémio Nobel da Física 2015 foi atribuído a dois físicos pela "descoberta das oscilações dos neutrinos, que mostra que os neutrinos possuem uma massa", anunciou esta terça-feira em Estocolmo a Real Academia das Ciências Sueca. Os premiados são o japonês Takaaki Kajita (n.1959), da Universidade de Tóquio (Japão); e o canadiano Arthur McDonald (n.1943), professor emérito da Queen’s University (Canadá).
Os neutrinos estão por todo o lado. Milhões de milhões destas partículas atravessam o nosso corpo a cada segundo sem darmos por elas. De facto, os neutrinos interferem muito raramente com a matéria – e detectá-los é uma árdua tarefa.
Os neutrinos podem ter diversas origens: alguns foram criados no Big Bang, outros surgem de cada vez que uma estrela morre numa grande explosão (ou supernova), outros ainda provêm da interacção das radiações cósmicas com a atmosfera terrestre, de reacções nas centrais nucleares ou de desintegrações radioactivas naturais, explica o comité do Nobel num documento que relata a história dos trabalhos premiados. Mas a maioria dos que chegam à Terra são criados nas reacções nucleares que decorrem no interior do Sol.
Diga-se ainda que o chamado Modelo Padrão da física das partículas (que descreve, ao nível subatómico, o mundo que nos rodeia) estipula que há três tipos de neutrinos. São eles os neutrinos do electrão, os neutrinos do muão e os neutrinos do tau – e cada um tem, segundo essa teoria, uma partícula “parceira” com carga eléctrica (respectivamente, o electrão, o muão e o tau, sendo estas duas últimas mais pesadas que o electrão e com tempos de vida muito curtos).
Cada um por seu lado, em pontos opostos do globo, os dois laureados deste ano lideraram, a partir de finais dos anos 1990, grandes equipas científicas internacionais encarregadas de uma missão que podia parecer quase impossível: detectar os neutrinos que chegavam à Terra para tentar explicar por que é que certas previsões teóricas acerca destas partículas elementares não batiam certo com as observações feitas até lá.
Acontece que, quando os neutrinos foram descobertos, em meados dos anos 1950 (mais de 20 anos depois de a sua existência ter sido proposta), calculou-se quantas dessas partículas eram teoricamente criadas no centro do Sol. Mas a medição experimental revelou um número muito inferior ao da teoria: até dois terços dos neutrinos solares pareciam ter, por assim dizer, desaparecido sem deixar rasto.
Para além da possibilidade de os cálculos teóricos estarem totalmente errados, houve então quem especulasse que os neutrinos não desapareciam, mas “mudavam de identidade” – passavam de um dos três tipos de neutrino para outro –, tornando-se indetectáveis pelos meios disponíveis. E se fosse possível provar que os neutrinos mudavam de tipo ao longo do seu percurso até nós, isso permitiria reconciliar a teoria e a experiência.
Piscinas subterrâneas
Foi preciso esperar quase até a viragem do milénio para entrarem em funcionamento dois super-detectores de neutrinos. Um deles, o Super-Kamiokande, é um tanque com 50.000 toneladas de água muito pura e 11.000 detectores de luz a toda a volta, construído a 1000 metros de profundidade numa antiga mina de zinco, a 250 quilómetros de Tóquio. O outro, o Observatório de Neutrinos de Sudbury (SNO), é um tanque com mil toneladas de água pesada (variante química da água) rodeado de 9.500 detectores e situado a 2000 metros de profundidade, numa antiga mina de níquel no Ontário (Canadá). Juntas, estas duas experiências permitiriam confirmar a mudança de identidade dos neutrinos, com implicações profundas para a física.
Quando por acaso um neutrino colide com um núcleo atómico ou um electrão nestas grandes massas de água (o que acontece muito raramente), isso gera um clarão de luz azul que pode então ser detectado pelos milhares de “olhos” electrónicos que estão à espreita, dia e noite, em redor destas piscinas subterrâneas.
As duas grandes experiências tinham objectivos diferentes. O do Super-Kamiokande era detectar neutrinos do electrão e neutrinos do muão vindos das interacções dos raios cósmicos com a atmosfera; o do SNO era detectar neutrinos vindos do Sol. E juntas, permitiram mostrar que os neutrinos mudavam efectivamente de tipo no seu percurso até aos detectores.
No caso da experiência no Japão, que começou em 1996, os cientistas constataram que o número de neutrinos do muão detectados variava em função da direcção da qual provinham essas particulas. Mais precisamente, o número de neutrinos do muão detectados que vinha da atmosfera logo por cima da mina era duas vezes maior do que o número vindo do outro lado da Terra (correspondendo, no primeiro caso, a uma viagem de umas dezenas de quilómetros e no segundo, de quase 13.000 quilómetros).
Como esta discrepância não se verificava com os neutrinos do electrão, uma conclusão impôs-se em 1998: os neutrinos do muão que “faltavam” ter-se-iam transformado em neutrinos do tau ao longo do seu percurso. Porém, como os neutrinos do tau não eram detectáveis nesta experiência, faltava “uma peça decisiva ao puzzle” para provar a transformação dos neutrinos, como refere o documento do comité do Nobel.
Essa peça seria acrescentada pelo SNO, que entrou em funcionamento em Maio de 1999. O SNO permitia medir, por um lado, o número de neutrinos do electrão e por outro, o número total de neutrinos (incluindo o do tau). Só que, como o Sol apenas gera neutrinos do electrão e como o SNO tinha sido concebido para detectar especificamente os neutrinos solares, se os neutrinos solares não mudassem de tipo, as duas medições deviam chegar ao mesmo resultado. Não foi isso que aconteceu: ao fim de dois anos, os resultados do SNO mostravam que apenas um terço dos neutrinos do electrão expectáveis tinha sido apanhado pelos detectores; dois terços tinham desaparecido. Já não havia lugar para dúvidas: parte dos neutrinos do electrão tinha mudado de identidade entre o Sol e a Terra.
O resultado trouxe consigo uma outra conclusão espectacular: que os neutrinos devem possuir uma massa, condição sine qua non para essa sua mudança de identidade ser possível. Já agora, a explicação deste “acto de magia” reside na física quântica, mas essa é outra história.
Seja como for, acontece que o já referido Modelo Padrão estipula, pelo contrário, que os neutrinos não têm massa. Portanto, “estas experiências revelaram a primeira fissura aparente no Modelo Padrão”, que até lá tinha resistido “a todos os desafios experimentais”, explica ainda o documento. “Tornou-se assim evidente que o Modelo Padrão não pode ser uma teoria completa do funcionamento dos constituintes fundamentais do Universo.”
O futuro? “Novas descobertas dos segredos bem guardados dos neutrinos irão certamente mudar a nossa compreensão da história, da estrutura e do destino do Universo”, conclui o comité do Nobel.
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