Estaremos a encaminhar-nos para uma nova extinção em massa da vida
na Terra, provocada pelos seres humanos? Para tentar prever o que
poderia acontecer – e talvez evitar o pior – é preciso perceber os
ecossistemas em termos de quem come o quê, concluem dois cientistas.
Representação artística de Lystrosaurus, antepassado dos mamíferos que sobreviveu à extinção em massa do fim do Pérmico. |
Os especialistas dão-lhe o nome de Grande Morte (Great Dying,
na expressão em inglês). Aconteceu num piscar de olhos geológico, há
252 milhões de anos, quando um vasto evento vulcânico na Sibéria cuspiu
gases nocivos e uma quantidade de lava suficiente para formar um novo
continente do tamanho da Europa.
O ar tornou-se mais quente e mais
seco, os incêndios assolaram a paisagem e o oceano tornou-se tóxico. Em
poucas dezenas de milhares de anos, perderam-se 90% das espécies
marinhas e três quartos da vida terrestre. “Foi devastador”, diz o
paleontólogo Peter Roopnarine. “Nunca a vida na Terra esteve tão perto
de desaparecer por completo.”
Mas os cientistas ainda têm muitas
perguntas acerca do que aconteceu durante a Grande Morte, formalmente
conhecida como a extinção em massa do fim do Pérmico. Quais foram as
primeiras espécies a desaparecer? Quando é que os ecossistemas
colapsaram totalmente? Quem morreu, quem sobreviveu – e porquê?
Roopnarine
pensa ter encontrado uma pista: a ideia de que a estabilidade da teia
alimentar – essa complexa hierarquia de quem come quem – seria capaz de
proteger as espécies quando um desastre acontece. Pelo menos durante
algum tempo.
As questões relativas à sobrevivência das espécies
tornaram-se mais prementes nos últimos anos, à medida que um número cada
vez maior de cientistas tem vindo a acreditar que o planeta poderia
estar a encaminhar-se rapidamente para uma outra extinção em massa –
desta vez provocada pelos seres humanos.
Se de facto a vida na
Terra for levar um outro golpe trágico, a melhor maneira de se preparar
parece consistir em saber como se desenrolaram, no passado, situações
semelhantes. Esses eventos de extinção em massa representam, como gosta
de frisar Roopnarine, “experiências naturais” que põem à prova a
capacidade de sobrevivência das espécies.
O único problema é que,
no fim do Pérmico, não havia lá ninguém para tirar apontamentos (os
polegares oponíveis demorariam 247 milhões de anos a evoluir, e seria
preciso esperar mais uns milhões de anos ainda até alguém inventar o
papel).
Foi por isso que Roopnarine, o curador de geologia da
Academia das Ciências da Califórnia, e o paleobiólogo Kenneth
Angielczyk, curador associado do Museu Field de Chicago, reconstruíram
eles próprios, minuciosamente, aquela antiga “experiência” utilizando
dados fósseis e modelos de computador. Algo que ninguém tinha feito até
aqui. Os seus resultados, publicados na revista Science, fornecem alguns indícios sobre como a vida consegue gerir crises de proporções monumentais.
A
chave da sobrevivência parece residir nas teias alimentares, as
complicadas interacções que todos nós já mapeámos com certeza na escola.
Elas ilustram como as espécies de um ecossistema arranjam comida –
evitando ao mesmo tempo tornar-se comida para outros. Ora, segundo estes
autores, uma teia alimentar estável pode proteger uma comunidade das
catástrofes ambientais – e até da perda de algumas espécies.
As
melhores teias alimentares são como um prédio bem construído: mesmo que
um tijolo se desfaça ou seja removido, a estrutura no seu conjunto
permanece sólida. E só quando algo de realmente traumático acontece –
quando por exemplo, se perdem demasiadas espécies ou uma espécie-chave
desaparece – é que a coisa toda se desmorona.
Olhando para fósseis
com 250 milhões de anos de idade, provenientes da bacia do Karoo, na
África do Sul – uma região conhecida pelas suas quintas de criação
de animais de caça e o seu registo fóssil em excelente estado de
conservação – Roopnarine e Angielczyk reconstituíram as teias
alimentares do Pérmico anteriores à extinção em massa. Para isso,
começaram por fazer um trabalho no terreno naquela vasta e quase
desértica zona varrida pelos ventos. E depois, sentados em frente a um
computador num laboratório norte-americano, tentaram mapear quem comia o
quê naquele antigo mundo.
Numa segunda fase, desmontaram essas
teias alimentares e reformularam-nas, obtendo novas configurações, para
ver como outras teias alimentares possíveis responderiam a um
cataclismo. Um pouco à maneira de alguém que, deitando fora as
instruções do kit de montagem de uma secretária, por exemplo, constrói no seu lugar um carrinho de apoio de mesa.
Resultado
notável: foi a cadeia alimentar do mundo real que demonstrou ser a
combinação possível mais resiliente de espécies que viviam naquela
altura. Por outras palavras, foi a partir do manual de instruções da
natureza que se construíram os sistemas mais estáveis.
“Parecer
ter havido uma manutenção permanente da resiliência”, diz Angielczyk.
“Mesmo se algum desastre viesse a atingir algumas espécies, isso não
iria afectar as outras.”
E mesmo quando confrontados com a fase
inicial da extinção em massa do fim do Pérmico, numa altura em que os
pequenos animais já estavam a morrer em grandes quantidades, as teias
alimentares permaneceram sólidas. Se o vulcanismo que desencadeou a
extinção não tivesse durado tanto tempo (cerca de um milhão de anos),
alguma vida poderia ter conseguido escapar incólume à catástrofe.
Só
que nem as teias alimentares mais estáveis conseguem resistir a um
milhão de anos de secas, fogos florestais, de acidificação dos oceanos e
de alterações climáticas descontroladas. E a dada altura, as plantas –
que eram o alicerce das teias alimentares do Karoo – começaram a
desaparecer. Dos 50 géneros (grupos de espécies) que existiam no Karoo
antes do evento, apenas cinco emergiram dessa segunda fase de extinções.
Porém,
o mundo que essas espécies viram então surgir era muito menos agradável
do que o mundo que tinham deixado para trás. Embora novas espécies
tivessem depressa emergido para preencher o vácuo deixado pelos seus
extintos predecessores, muitas acabariam rapidamente por morrer.
De
facto, essas teias alimentares “reconstituídas” eram muito menos
estáveis do que as que tinham perdurado durante o período Pérmico – o
que mostra que não bastam umas quantas espécies novas para reconstruir
um ecossistema. As interacções tinham primeiro de evoluir e de melhorar.
E seriam precisos três a cinco milhões de anos para que a vida na Terra
conseguisse novamente assentar, dando origem à idade dos dinossauros.
“O
que está a acontecer hoje é diferente da extinção em massa de há 250
milhões de anos”, diz Roopnarine. “Em termos de exploração excessiva de
recursos, de alterações climáticas, de perda de habitats e de destruição
da natureza, estamos a ir muito para além da experiência vivida por
qualquer outra espécie.”
Mas o que sabemos, acrescenta, é que a
melhor maneira de prever a sobrevivência dos ecossistemas é olhar para a
estabilidade da sua teia alimentar: Quem come quem? Quais são as
espécies que asseguram a coesão do conjunto? Quais são as espécies que
um ecossistema pode perder sem grande impacto, tal como aconteceu com os
pequenos vertebrados das teias alimentares do fim do Pérmico?
Proteger
um animal de quem todos gostamos – como o panda-gigante ou o
bisonte-americano – poderia revelar-se fútil se não protegermos ao mesmo
tempo a comunidade à qual pertencem. “Não se trata apenas de preservar
as espécies, trata-se de preservar as suas interacções”, diz Roopnarine.
“Mas isso significa que temos de perceber essas interacções.”
Actualmente,
as teias alimentares modernas ainda são algo misteriosas, acrescenta. E
quando as conseguimos perceber, isso acontece muitas vezes depois de
alguma coisa ter corrido mal – como no caso dos recifes de corais das
Caraíbas. E então, já é tarde demais para fazer seja o que for.
O
registo fóssil dos últimos 20.000 a 30.000 anos – que nos parece uma
eternidade, mas representa apenas um instante em termos geológicos –
está recheado de esqueletos de espécies extintas por predadores humanos
ou pela destruição dos habitats: o mamute-lanudo, o dodó, o
dugongo-de-steller. Do ponto de vista da paleontologia, “isto tem
certamente o aspecto de algo do tipo extinção em massa”, diz Angielczyk.
Se
quisermos ter a certeza de que as espécies existentes vão sobreviver às
pressões da vida moderna, temos de perceber o que mantém estáveis as
comunidades modernas. E entretanto, “temos de ser muito cautelosos”,
alerta Angielczyk. Não sabemos o que é que poderia vir a desencadear a
próxima Grande Morte.
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