Fóssil descoberto em Espanha está tão bem conservado que revela
com pormenor a pelagem do animal e até dos seus órgãos internos. Um dos
cientistas da equipa que o estudou também tem investigado fósseis de
mamíferos primitivos encontrados numa antiga mina portuguesa.
Ilustração científica do Spinolestes xenarthrosus |
Spinolestes xenarthrosus |
Fóssil do Spinolestes xenarthrosus encontrado em Espanha |
Pesava 50 a 70 gramas, a cabeça e o corpo mediam 13 centímetros e a
cauda outros 11. Vivia no chão, numa zona pantanosa perto de um lago
enorme, alimentando-se de insectos e de outros pequenos invertebrados.
Eis o Spinolestes xenarthrosus, um mamífero novo para a ciência
que viveu há 125 milhões de anos e trouxe revelações sobre o
aparecimento dos pêlos e dos espinhos nos mamíferos primitivos e até
sobre as suas infecções na pele.
O seu pequeno fóssil, exemplar
único, foi descoberto em 2012, na jazida paleontológica de Las Hoyas, no
meio de Espanha, a 170 quilómetros a Leste de Madrid e 30 da cidade de
Cuenca. Todos os verões, os cientistas vão para lá fazer escavações à
procura de fósseis de animais e de plantas que viveram há 125 milhões de
anos, no período do Cretácio Inferior, e que ficaram fossilizados nas
rochas calcárias.
Naqueles tempos, Las Hoyas não era uma zona
seca, como agora. Havia um lago, que chegou a ter 50 quilómetros
quadrados. O clima destas terras, então noutras latitudes, era quente
como o das regiões subtropicais. Floresciam coníferas e fetos.
As
águas do grande lago, pouco profundas, fervilhavam de vida. Celacantos,
tubarões, peixes vários. Na orla palustre, havia crocodilos, tartarugas e
insectos, como libélulas. Nos bosques à volta do lago, encontravam-se
dinossauros, os senhores da Terra de então, como o pequeno Pelicanimimus. E os ares eram dominados pelas aves, entre elas o Iberomesornis, forma intermédia entre os dinossauros e as aves actuais.
Sabe-se
que todos eles tinham vivido ali através do que ficou depositado no
fundo do lago, nos lodos finos, em excelente estado de conservação por
causa da ausência de oxigénio, e que foi depois tapado por mais
sedimentos ao longo de milhões de anos. Las Hoyas é hoje um paleolago,
ou lago paleontológico. A sua descoberta em 1984 foi por acaso, quando a
zona foi arada e as lajes calcárias acabaram por se soltar e ficar à
vista. Chegaram a ser ter usos ornamentais, até que alguém reparou nos
fósseis que aprisionavam e foi mostrá-las a cientistas da Universidade
Autónoma de Madrid (UAM). Tinha-se encontrado uma das jazidas
paleontológicas mais importantes da Península Ibérica.
Ora em 2012
os cientistas voltaram para mais uma temporada de escavações,
coordenada pela espanhola Angela Buscalioni, da UAM, com as suas
picaretas. Há muitos voluntários, e um deles, José Luis Sañudo,
deparou-se numa das lajes com o fóssil completo de um pequeno mamífero.
Entre tantos fósseis já ali encontrados — como ainda pterossauros,
lagartos e salamandras —, aquele era o primeiro de um mamífero.
Angela
Buscalioni é especialista em répteis da era Mesozóica (entre há 252
milhões de anos e 65 milhões de anos), por isso decidiu contactar um
especialista em mamíferos dessa era, o alemão Thomas Martin. O resultado
dessa colaboração é a descrição do Spinolestes xenarthrosus como um género e espécie novos para a ciência na edição desta quinta-feira da revista Nature.
Faz
parte dos eutriconodontes, um grupo de mamíferos que viveu entre o
Jurássico Médio e o Cretácico Superior. Tinham uma fileira de dentes com
três pontas afiadas (cúspides) na zona da bochecha. “Estão totalmente
extintos e não têm uma relação próxima com nenhum grupo de mamíferos
modernos. Surgiram muito antes dos mamíferos marsupiais e placentários”,
explica ao PÚBLICO Thomas Martin, da Universidade de Bona, na Alemanha.
“Andavam no chão e os seus representantes mais pequenos, como o
Spinolestes, eram insectívoros, ao passo que alguns eutriconodontes
grandes eram predadores carnívoros ou necrófagos. O maior mamífero do
Mesozóico conhecido, o Repenomamus do Cretácico Inferior, era um eutriconodonte que pesava dez a 15 quilos.”
Em
vários sentidos, o fóssil de Las Hoyas é único, frisa o paleontólogo
alemão. “É um esqueleto completo de um mamífero que tem as estruturas
integumentárias extraordinariamente preservadas: pêlos, espinhos,
escamas dérmicas, pavilhão auricular [a orelha] e órgãos internos, como
os pulmões e o fígado. Os pêlos estão preservados a nível celular, o que
até agora não tínhamos no registo fóssil dos mamíferos do Mesozóico.
Esse pormenor de preservação da pelagem é único”, diz o paleontólogo.
“Pela primeira vez, esta descoberta dá informação sobre a evolução dos
pêlos e espinhos na história evolutiva dos mamíferos do Mesozóico.
Fornece provas sobre os primeiros espinhos e escamas. Única é também a
preservação de tecido dos pulmões e do fígado.”
Thomas Martin não
se cansa de realçar a excepcionalidade deste fóssil. “Há outros
mamíferos do Mesozóico até mais velhos (do Jurássico) que têm pêlos
preservados, mas ficaram na rocha só como uma camada escura ou uma
impressão”, esclarece. “A prova mais antiga de pêlos em mamíferos é, até
agora, do Jurássico Médio — por exemplo, do Castorocauda e do Megaconus,
do Nordeste da China. Porém, nestes casos o pêlo está preservado só
como uma camada escura sem quaisquer detalhes estruturais. Foram
descritos pêlos isolados de mamíferos em âmbar do Cretácico, dando
alguns detalhes, mas a sua origem é desconhecida.”
Provas directas
de pêlos eram, até agora, bastante mais recentes: o tecido fossilizado
do fóssil de Las Hoyas “estende o conhecimento directo de
microestruturas integumentárias de mamíferos dos 60 milhões até aos 125
milhões de anos”, lê-se no artigo.
De Las Hoyas a Guimarota
O que já revelaram estas estruturas antigas? “O Spinolestes mostra
que a diferenciação dos integumentos (diferentes tipos de pêlos,
espinhos ou escamas córneas) já tinha ocorrido nos tempos mesozóicos”,
diz Thomas Martin. “Uma vez que o Spinolestes não é próximo de
nenhum grupo moderno de mamíferos, significa a evolução dos espinhos
ocorreu diversas vezes de forma independente na história dos mamíferos,
como nos ouriços e no porco-espinho.”
Os espinhos do Spinolestes tinham
a sua função. “Na parte de trás das costas, a pelagem era espinhosa,
funcionando provavelmente como equipamento de defesa, como nos
ratos-espinhosos modernos. Nestes ratos, os espinhos desprendem-se
facilmente e se um deles é mordido nas costas o predador fica com a boca
cheia de espinhos e rato foge. Os espinhos voltam a crescer e o animal
não fica gravemente ferido.”
O Spinolestes também tinha uma coluna
vertebral reforçada com articulações adicionais entre as vértebras, o
que permite inferir o seu estilo de vida. “Estas articulações davam à
coluna vertebral uma força extraordinária. O Spinolestes vivia
num ambiente pantanoso, onde procurava insectos e outros animais
pequenos na vegetação rasteira, usando a força da coluna para afastar
cascas e outros materiais de plantas à procura de larvas”, explica o
paleontólogo. “Também tinha patas anteriores [da frente] bastante
fortes, que usava para arranhar e escavar.”
Há mais: a localização dos órgãos internos do Spinolestes indica
que possuía diafragma, músculo que separa os pulmões (na cavidade
torácica) do fígado (na cavidade abdominal). “O diafragma é típico dos
mamíferos modernos e um pré-requisito para uma respiração eficaz nos
mamíferos. A sua presença no Spinolestes demonstra que já tinha aparecido nos primeiros mamíferos do Cretácico.”
Ao
ter mantido conservada a primeira orelha de um mamífero do Mesozóico,
este fóssil dá ainda indicações sobre a forma e o tamanho das orelhas
dos mamíferos daqueles tempos. E, por fim, sofria de dermatofitose, uma
infecção por fungos que afecta a pele e os pêlos, originando zonas
circulares sem pelagem, comum nos mamíferos de hoje. “Encontrámos pêlos
no Spinolestes parecidos com os pêlos dos mamíferos modernos
com este problema. Por isso, inferimos que este tipo de infecção já
existia no Cretácico”, relata o investigador, rematando: “Para mim, esta
descoberta é extremamente entusiasmante porque tem informações sobre
estruturas que consideravamos inacessíveis. É mais uma prova de que os
mamíferos do Mesozóico não eram criaturas primitivas parecidas com
musaranhos, mas que já eram altamente diversificados.”
Thomas
Martin conhece bem os fósseis de mamíferos primitivos descobertos perto
de Leiria— na antiga mina da Guimarota, de onde se extraiu um carvão até
1961, quando fechou. Por essa altura, já um outro cientista alemão
(Walter Kühne, da Universidade Livre de Berlim) tinha descoberto este
tesouro paleontológico. Nos anos 60, 70 e 80, foram-se recolhendo
fósseis (de mamíferos, crocodilos, peixes, anfíbios, lagartos,
dinossauros, pterossauros, aves primitivas...). Foram sobretudo os seus
fósseis de mamíferos do Jurássico Superior, com 150 milhões de anos, que
a tornaram conhecida.
Os primeiros mamíferos da Terra tinham
aparecido muito antes, há 220 milhões de anos. E os mamíferos da
Guimarota contribuíram para conhecer melhor essa história. Por exemplo,
saiu de lá, em 1976, o primeiro esqueleto de um mamífero do Jurássico: o
Henkelotherium guimarotae, que vivia nos ramos das árvores e comia insectos.
Em
2007, Thomas Martin veio devolver a Portugal, e ao Museu Geológico de
Lisboa, parte dos mamíferos da Guimarota que ainda estavam na Alemanha,
onde foram preparados e estudados. Actualmente, assegura, quase todo o
material da Guimarota já voltou a Portugal. Daí que lhe tivéssemos
perguntado se há muitas diferenças entre os mamíferos da Guimarota e o
de Las Hoyas. “Não são assim tão diferentes”, responde. “Os mamíferos da
Guimarota também tinham pelagem (pelo que sabemos por fósseis
contemporâneos da China), embora os pêlos não tivessem ficado
preservados.”
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