quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Portugueses estão a desenvolver uma vacina contra a malária

Texto de Nicolau Ferreira publicado pelo jornal Público em 20/11/2013
Financiamento de 902 mil euros da Fundação Gates irá permitir a equipa internacional, liderada por laboratório português, continuar a testar uma potencial vacina com parasita transgénico, que já deu resultados preliminares positivos.
 
Plasmodium berghei transgénico, a proteína circunsporozoito do parasita humano está a azul
Miguel Prudêncio, líder de uma equipa no Instituto de Medicina Molecular

Plasmodium berghei (com membrana a vermelho), que causa a malária nos roedores, a multiplicar-se dentro de uma célula de fígado humana (a verde) com o núcleo azul
Uma vacina contra a malária está a ser concebida por portugueses desde 2010. Na altura, Miguel Prudêncio, investigador e líder de uma equipa no Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa, recebeu 100 mil dólares da Fundação Bill & Melinda Gates depois de concorrer a um financiamento de Fase I do programa Grand Challenges Explorations. Agora, passados três anos, o investigador volta a ser premiado pela fundação, desta vez com 902 mil euros, para continuar o projecto. Se tudo correr bem, daqui a dois anos começarão os primeiros ensaios clínicos em humanos para testar uma candidata a vacina, cuja ideia nasceu em Portugal.
 
O conceito de Miguel Prudêncio é simples. É preciso um parasita da malária de roedores, que não causa a doença em humanos, mas interage o suficiente com o sistema imunitário para provocar a imunização. Depois, é preciso inserir um gene do parasita humano no parasita de roedores, para criar uma imunização dirigida à malária humana. A ideia funcionou. O novo financiamento da fase II vai servir agora para fazer as últimas experiências preliminares, desenvolver um método de produção in vitro do parasita de roedores e vai ajudar a fazer a aplicação do pedido para a realização de ensaios em humanos na Holanda. Miguel Prudêncio está esperançoso, mas o investigador sabe que ainda há muitos desafios para ultrapassar, ou não fosse esta uma doença muito complexa.
 
O parasita da malária começa por se multiplicar no fígado e vai depois para o sangue, onde causa os sintomas. A única vacina que funcionou até hoje, testada na década de 1970, utilizou parasitas atenuados por radiação, que entravam nas células do fígado, mas não conseguiam multiplicar-se. Esta técnica foi aplicada a militares norte-americanos, que tinham de ser picados pelos mosquitos, um método impossível de ser massificado, mas que resultava. Os soldados quando eram depois infectados pelo Plasmodium falciparum – a espécie de parasita que causa a malária mais violenta – não ficavam doentes.
 
Sabe-se hoje que a fase no fígado provoca a activação do sistema imunitário do hospedeiro humano. A proteína circunsporozoito, que durante este estádio do parasita preenche a sua membrana externa, é a principal responsável pela imunização. Infelizmente, durante a infecção natural da doença, há algo que impede o desenvolvimento da imunidade observada nos militares americanos. “Pensa-se que durante a fase da doença no sangue haja algo que destrua o processo de imunidade, que foi desenvolvido durante a fase do fígado”, diz Miguel Prudêncio ao PÚBLICO. É mais um dos mistérios da malária.
 
Nas últimas décadas, foram feitas várias tentativas para produzir uma vacina. A de Manuel Elkin Patarroyo, um patologista colombiano, muito referida na década de 1990, revelou-se ineficaz. Ao todo, 27 vacinas chegaram aos ensaios clínicos em humanos. A RTS, S/AS01, da GlaxoSmithKline, que utiliza parte da proteína circunsporozoito para provocar a imunidade, está na fase III (estudos comparativos para demonstrar a segurança, eficácia e benefício terapêutico). Mas os resultados não são animadores, a vacina dá imunidade a menos de metade das pessoas. O projecto de Miguel Prudêncio será um de muitos que ainda estão na fase prévia de experimentação no laboratório.
 
A ideia, que nasceu quando o investigador ainda estava na equipa de Maria Mota, especialista em malária do IMM, também envolvida no desenvolvimento desta vacina, tem muitas semelhanças com a experiência da década de 1970. No fundo, o objectivo é ter um parasita que penetre o fígado, provoque uma imunização no hospedeiro, mas que não cause a infecção no sangue. O parasita usado agora chama-se "Plasmodium berghei", causa malária em roedores, e foi alterado geneticamente para causar imunidade contra o Plasmodium falciparum – ganhou o gene que comanda o fabrico da proteína circunsporozoito do parasita humano.
 
As experiências laboratoriais dos últimos anos, feitas em grande parte por António Mendes, investigador da equipa de Miguel Prudêncio, serviram para provar que o sistema funciona, pelo menos em laboratório. Os investigadores começaram por mostrar que o Plasmodium berghei infecta tanto células do fígado (hepatócitos) como minifígados humanos (aglomerados de hepatócitos gerados in vitro). Depois, a equipa demonstrou que os parasitas entravam no fígado "humanizado" de ratinhos, que tinham uma grande percentagem de células humanas.
 
De seguida, utilizando ratinhos transgénicos que produzem sangue humano, verificaram que os parasitas já não conseguiam multiplicar-se neste sangue. “O parasita infecta hepatócitos humanos, mas não consegue completar o ciclo nos glóbulos vermelhos humanos”, explica Miguel Prudêncio.
 
Finalmente, a equipa analisou a capacidade deste parasita transgénico provocar imunidade. Os cientistas infectaram ratinhos normais com o Plasmodium berghei transgénico. Quando esta aplicação foi repetida cinco vezes, verificou-se que no soro destes ratinhos havia suficientes anticorpos que reagiam contra o Plasmodium falciparum. Num sistema in vitro, estes anticorpos bloqueavam a acção destes parasitas, impedindo-os de infectar hepatócitos humanos. A equipa encontrou também linfócitos, células do sistema imunitário, que reagiam ao parasita humano. Segundo Miguel Prudêncio, para uma vacina ser eficaz, é necessário que produza estes dois tipos de resposta de imunidade.
 
Os resultados convenceram a Fundação Bill & Melinda Gates. Parte das experiências, todas coordenadas pela equipa portuguesa, foram também realizadas em Espanha, nos Estados Unidos e na Holanda. Agora, grande parte dos próximos passos será feita na Holanda.
 
Ensaios com macacos
Haverá ensaios com macacos rhesus no Centro de Investigação Biomédico de Primatas, em Rijswijk. As experiências vão utilizar mais de uma dezena de animais para tentar repetir os resultados em ratinhos. Nos próximos 18 meses, Miguel Prudêncio quer apresentar os documentos ao Comité Central sobre Investigação de Pessoas, a entidade holandesa que aprova os ensaios em humanos, que depois serão feitos na Universidade Radboud, em Nijmegen, na Holanda. É necessário reunir a informação das experiências e ter um projecto consolidado para provar que os ensaios em humanos fazem sentido. Serão necessários pelo menos 15 voluntários para estes testes.
 
“Queríamos fazer os ensaios em Portugal”, diz Miguel Prudêncio. “Mas não há precedentes deste tipo de ensaios cá e a fundação já conhece esta universidade, tem confiança e diz que assim será mais rápido.”
 
Por cá, vão ser feitos mais alguns ensaios pré-clínicos e irá ser aprimorada uma técnica para criar o Plasmodium berghei in vitro, sem necessitar dos mosquitos. Só nesta espécie é que se demonstrou que a técnica é possível, o que facilitaria muito, no futuro, a produção de uma vacina. A equipa está em contacto com a cientista que desenvolveu a técnica. É um “grande desafio”, diz-nos Miguel Prudêncio, que garante que a produção de uma vacina demorará bem mais de dez anos – se tudo correr bem. “Temos todas as razões para acreditar que os resultados experimentais vão ser os que estamos à espera.”

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