quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Nove pessoas e um radar salvam aves da morte certa em Sagres

Texto de Ricardo Garcia publicado pelo jornal Público na rubrica Ambiente, em 22/11/2012.
"A mortalidade de aves é um problema potencial dos parques eólicos. Em Sagres, principal rota de migração de espécies planadoras como os abutres, um sistema de monitorização está a conseguir evitar o pior.
Biólogo de vigia na serra algarvia: um por cento do ano sem produzir electricidade, zero aves mortas
Vento é o que não falta em Sagres. E o biólogo Alexandre Leitão sabe bem do que se trata. Durante 108 dias por ano – de 15 de Agosto a 30 de Novembro –, Leitão e mais oito pessoas enfrentam-no praticamente desde as primeiras horas da manhã até ao pôr do sol. Passam o dia ao ar livre, posicionados no topo dos montes, de binóculos em punho, a vigiar o horizonte.
 
A sua missão é evitar que as aves – sobretudo as grandes planadoras, como os grifos ou as águias – colidam contra os 25 aerogeradores de um parque eólico ali construído há três anos.
 
Há razões de sobra para esta preocupação. Estamos no Barão de São João, no concelho de Lagos, onde a serra, dobrada numa sequência de montes e vales, desagua no planalto inclinado que conduz ao mar. A ponta de Sagres fica a pouco mais de 20 quilómetros de distância, em linha recta. Neste eixo, passam milhares de aves durante o Outono. É uma das mais importantes rotas migratórias do país. Mas também é um ponto ideal para se aproveitar a força do vento para produzir electricidade.
 
Há vários parques eólicos instalados na serra algarvia naquela região. No entanto, só o do Barão de São João, o maior deles, é vigiado em permanência. E desde 2010 a empresa de consultoria ambiental Strix – contratada pelos donos do parque eólico – mantém aquele pequeno exército de vigilantes a postos para mandar parar os aerogeradores sempre que há risco de aproximação das aves.
 
Praticamente nenhuma escapa ao rastreio de um radar especialmente adaptado àquela função e que, instalado num dos montes, identifica seja uma única ave, seja grandes bandos, num raio de oito quilómetros. “É o instrumento mais forte que temos para a monitorização”, afirma Alexandre Leitão.
O segundo instrumento é humano: a vista. Há oito postos de observação – três na área do parque eólico e cinco num perímetro de segurança à sua volta. Uma nona pessoa está de guarda em Sagres.

Sinal de alarme
No dia em que o PÚBLICO visitou o parque eólico, bastou que um bando de grifos levantasse voo para os lados de Sagres para que soasse o alarme. Eram centenas de pontos minúsculos que se viam no horizonte, lá longe, por cima de uma mata. “Em segundos eles metem-se aqui dentro do parque eólico”, diz Leitão, sem descolar os olhos dos binóculos. Sem hesitar, o biólogo alerta a central de operações da empresa Parque Eólico do Barlavento, a dona dos aerogeradores: “Olá, bom dia. Temos aqui uma situação, vamos ter de parar parque na totalidade”. E, em questão de segundos, as enormes pás de 87 metros de diâmetro estão imobilizadas.
 
Pouco tempo depois, um grupo de oito grifos surge a oeste do parque, em movimento circular, mas mantidos à distância pelo vento que sopra de sudeste. “Se eu bem conheço a psique destes bichos, eles vão continuar a tentar vir para cá”, avalia Leitão.
 
Cerca de 1500 grifos tinham pernoitado na região na noite anterior. Fazem parte dos milhares de aves que passam por ali nessa época. Vêm sobretudo da própria Península Ibérica e rumam em direcção a África, onde passarão o Inverno.
 
Mas não é a partir de Sagres que atravessam o oceano. A principal rota migratória de aves planadoras na Europa passa pelo Bósforo, na Turquia. A segunda mais importante utiliza o estreito de Gibraltar como ponte para África. Cerca de 400 mil fazem este percurso todos os anos.
 
Dar a Sagres é um acidente de percurso. As que ali chegam – cerca de cinco mil – são sobretudo aves juvenis, que estão a fazer a migração pela primeira vez e ainda não conhecem o caminho. Perderam-se, e, quando se deparam com o largo mar, sem terra à vista do outro lado, compreendem logo que não o podem vencer. “As aves planadoras são muito grandes, não conseguem migrar a bater as asas sem parar”, explica Ricardo Tomé, director científico da Strix. Aves como os abutres, águias, cegonhas e grous necessitam de correntes ascendentes – chamadas “térmicas” – para poderem planar por grandes distâncias. “É como uma asa delta”, exemplifica Tomé. “Por cima da água, perdem sustento.”
 
Impedidas de prosseguir, as aves andam às voltas entre Sagres e a serra, à procura do caminho certo. E é aí que a probabilidade de passarem entre os aerogeradores do Barão de São João é maior.

200 aves mortas

A mortalidade das aves é um dos problemas potenciais dos parques eólicos. Um estudo apresentado este ano por uma equipa de técnicos da empresa Bio3 – outra consultora portuguesa na área ambiental e da biodiversidade – identificou a morte de 200 aves e 214 morcegos em 62 parques eólicos em Portugal, entre 2003 e 2010. As maiores vítimas foram pequenas aves passeriformes – como a andorinha-dos-beirais, a laverca e o trigueirão. Cerca de 15% das mortes eram de aves de rapina.
 
Este retrato não mostra a realidade toda. O estudo baseou-se na informação que havia – 85 relatórios de monitorização daqueles parques eólicos – e que está longe de ser completa. Encontrar aves mortas à volta de um aerogerador, além disso, não é tarefa fácil, e muitas carcaças podem não ser encontradas numa vistoria de rotina. A própria Bio3 sugere a utilização sistemática de cães para esta função.
 
Um relatório publicado em Agosto passado pela Agência Sueca de Protecção Ambiental sugere que, na Europa e na América do Norte, cada aerogerador mate 2,3 aves e 2,9 morcegos por ano. É uma média, que esconde uma grande disparidade, com parques eólicos a registarem a morte de até 60 a 70 animais por ano.
 
Em Sagres, a quantidade de aves é um dos problemas, mas não o único. Os grifos ali passam em grandes bandos. Embora não sejam uma espécie ameaçada, a possibilidade de morrerem muitos indivíduos é elevada. Ao mesmo tempo, outras aves planadoras que estão em risco de extinção – como o abutre-preto, a águia-real ou a águia-imperial ibérica – aparecem muitas vezes misturadas aos bandos de grifos. “A morte de um ou dois indivíduos destas espécies por ano já causa alguma mossa à população”, afirma Ricardo Tomé.
 
Os grifos e outros abutres têm tudo para dar de cabeça contra um aerogerador. São bichos que vêem muito bem para baixo e para cima, mas têm um grande ponto cego à frente, ou seja, simplesmente não conseguem aperceber-se das enormes pás dos aerogeradores, a não ser quando estão mesmo em cima delas. Além disso, são aves muito grandes, com mais de 2,5 metros de envergadura e até sete quilos de peso, que têm pouca agilidade para manobras rápidas.
 
No parque do Barão de São João, nenhuma ave planadora morreu, desde que começou o trabalho de monitorização. O sucesso do projecto está a levar a Strix para fora de Portugal, com projectos semelhantes em perspectiva em países do Médio Oriente, como o Egipto e Israel.

Menos um por cento
A contrapartida negativa na produção eléctrica é relativamente reduzida. Em 2011, o parque esteve parado durante 84 horas – 1% do ano. Sempre é uma receita a menos para a Parque Eólico do Barlavento, empresa detida pela alemã E.ON. Mas como a monitorização era uma medida obrigatória para o licenciamento, as paragens já estavam desde o princípio previstas nas contas do projecto. “Está até abaixo do que esperávamos”, afirma Luís Villa de Brito, responsável da E.ON pelo parque eólico.
Quem vê as imagens dos grifos a passarem pelo meio dos aerogeradores estanques no Barão de São João compreende o que significa aquela medida. “Não é algo que não se perceba”, diz Luís Villa de Brito.
 
Alexandre Leitão já viu um grifo apanhado pelas pás de um aerogerador, noutro parque eólico. “Estava cortado ao meio, limpinho, como se tivesse sido com uma faca”, recorda, antes de dar mais uma ordem à central de operações. Os grifos que se tinham levantado afinal desistiram de voar, não está calor suficiente. “Olá, daqui é o Alexandre Leitão novamente. Neste momento não temos nada que nos preocupe. Podem arrancar com as máquinas.” "

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