quarta-feira, 10 de abril de 2013

Cientistas conseguiram tornar o cérebro transparente para melhor o perscrutar

Texto de Ana Greschenfeld publicado pelo jornal Público em 10/04/2013
"A nova técnica, que tem o sugestivo nome de Clarity (clareza), poderá abrir caminhos absolutamente inéditos ao estudo do cérebro humano.
O cérebro é um órgão opaco. E para estudar em pormenor a sua estrutura era, até aqui, preciso cortá-lo em finíssimas fatias de forma a permitir a passagem da luz dos microscópios. Mas isso quebrava a continuidade dos tecidos e limitava portanto a visão global das interacções entre as diversas estruturas cerebrais. Agora, graças ao trabalho de cientistas da Universidade de Stanford (EUA), descrito online na revista Nature nesta quarta-feira, poderá tornar-se possível visualizar o cérebro intacto em todo o seu esplendor.
 
O que torna o cérebro opaco são principalmente as gorduras (os lípidos) que contém. Para além de serem um ingrediente fundamental de todas as membranas celulares, os lípidos garantem a coesão das complexas estruturas e subestruturas neuronais, mantendo também no seu sítio os feixes de fibras nervosas que as ligam entre si. Tirem-se os lípidos, e o órgão simplesmente desmorona-se, explica em comunicado a Universidade de Stanford.
 
Ou talvez não. Karl Deisseroth e os seus colegas desenvolveram um gel sintético transparente que impede a desintegração, na ausência dos lípidos, do tecido cerebral. Retiraram os lípidos e os cérebros assim tratados de ratinhos ficaram intactos – e transparentes.
 
Deisseroth já era conhecido como pioneiro das técnicas de optogenética, que permitem introduzir genes nos neurónios para conseguir “ligar” e “desligar” essas células à vontade utilizando feixes de luz. A optogenética é hoje utilizada com grande sucesso pelos neurocientistas no mundo inteiro.
Quanto à nova técnica, permitiu obter imagens ao microscópio com uma resolução sem precedente de cérebros inteiros. E testes realizados num cérebro humano conservado no formol permitem esperar que o método também possa servir para pôr esse nosso mais complexo órgão “a nu”, para estudar o seu funcionamento e as suas doenças.
 
Os cientistas substituíram portanto os lípidos do cérebro por um gel inicialmente líquido. Coloca-se o cérebro de molho na solução e passados uns tempos aquece-se ligeiramente. O gel solidifica – e como não se liga aos lípidos, estes podem então ser evacuados rapidamente por electroforese (técnica que permite a separação das moléculas graças a um campo eléctrico). “O que resta”, diz o mesmo comunicado, “é um cérebro 3D transparente com todas as suas estruturas importantes – neurónios, axónios e dendrites [as extensões dos neurónios], sinapses [os pontos de passagem do impulso nervoso entre neurónios], proteínas, ácidos nucleicos [o material genético] e por aí fora – intactos e cada um no seu lugar.”
 
Diz Deisseroth: “O estudo de sistemas intactos com este nível de resolução molecular e de alcance global – o facto de conseguir ver os pormenores finos e ter uma visão de conjunto ao mesmo tempo – tem sido um enorme desafio para a biologia. O Clarity permite-nos aproximarmo-nos da solução.”
 
Mas as vantagens não acabam aí: como o gel é poroso, a técnica (já agora, Clarity é o acrónimo de clear lipid-exchanged anatomically rigid imaging/immunostaining-compatible tissue hydrogel) também torna o órgão “gelificado” permeável às substâncias químicas. Os cientistas demonstraram assim, em ratinhos, que é possível introduzir anticorpos para tornar fluorescentes estruturas cerebrais específicas. E mais: esses anticorpos também podem ser facilmente retirados, deixando o órgão pronto para novos testes – uma operação que pode ser repetida múltiplas vezes.
 
Numa outra experiência, a equipa analisou cérebros humanos (entre os quais o de um rapaz de sete anos que sofria de autismo) que tinham sido conservados no formol durante anos. E, apesar do endurecimento dos tecidos que isso acarreta, foi possível submeter esses cérebros ao mesmo tratamento e visualizar as fibras nervosas e os neurónios. Um vídeo da Nature resume os resultados.
 
“Este feito de engenharia química promete transformar a maneira como estudamos a anatomia do cérebro e as alterações provocadas pela doença”, diz Tom Insel, director do NIMH (Instituto Nacional de Saúde Mental norte-americano), num comunicado daquela agência governamental, que financiou a investigação. “A partir de agora, o estudo em profundidade do nosso mais importante órgão tridimensional já não será limitado por métodos bidimensionais.” "

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