quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A ativação do sistema imunitário

Na sequência da atribuição do Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina o jornal Público publicou um excelente artigo da jornalista Ana Gerschenfeld a seguir transcrito quase integralmente.

Ana Gerschenfeld
"Vivemos rodeados de inimigos invisíveis – bactérias, vírus, fungos, parasitas. Quais são os “guardiões” que alertam o nosso sistema imunitário para a presença destes perigosos intrusos quando eles se introduzem no nosso organismo? O norte-americano Bruce Beutler, o francês Jules Hoffmann e o canadiano Ralph Steinman…foram ontem distinguidos em Estocolmo com o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina 2011 por terem permitido perceber como o sistema imunitário é ativado quando surge uma ameaça patogénica.
O sistema imunitário (humano, mas não só) possui duas linhas de defesa. A primeira é a imunidade inata, que, ao ativar-se em presença de um microrganismo potencialmente perigoso, consegue destruí-lo rapidamente. Os seus principais protagonistas são células chamadas fagócitos, que literalmente “devoram” os intrusos.
A segunda linha de defesa, dita de imunidade adaptativa, ativa-se quando um microrganismo causador de doença consegue vencer a primeira barreira. Os seus atores principais são os linfócitos B e T, que respetivamente produzem anticorpos e causam a multiplicação de células “assassinas” para destruir as células infetadas. Para mais, este segundo tipo de imunidade possui uma “memória”, que vai permitir que o organismo desenvolva rapidamente uma plena resposta imunitária da próxima vez que o mesmo agressor nos ameaçar. As vacinas exploram precisamente essa memória imunitária, mantendo-nos protegidos contra uma série de doenças durante anos a fio – e por vezes a vida toda.
Muitos componentes do sistema imunitário foram descobertos durante o século XX. “Graças a uma série de descobertas que foram recompensadas com Prémios Nobel”, explica o Instituto Karolinska em comunicado, “sabemos, por exemplo, como são construídos os anticorpos e como os linfócitos T reconhecem as substâncias estranhas ao organismo.” Contudo, seriam precisas as descobertas dos laureados do Nobel 2011 para se ficar a conhecer os processos de ativação de cada uma das duas facetas da imunidade (que envolvem, nomeadamente, uma forma de comunicação entre elas).
À procura dos “gatilhos”
Foram os trabalhos de Hoffmann e Beutler que permitiram desvendar a identidade do “gatilho” da imunidade inata…
Em 1996, Hoffmann estava a tentar perceber como faziam as moscas do vinagre para combater as infeções. Foi assim que descobriu que as moscas que tinham uma mutação ao nível de um gene chamado Toll morriam quando eram infetadas por bactérias ou fungos porque não conseguiam desenvolver uma reação imunitária adequada contra eles. Hoffman mostrou ainda que esse gene estava envolvido na deteção dos microrganismos patogénicos pelo sistema imunitário das moscas e que a sua ativação era necessária para a imunidade inata funcionar corretamente.
Entretanto, Beutler estava a tentar perceber como é que certos tipos de toxinas de origem bacteriana, os lipopolissacarídeos (LPS), conseguem produzir em certos doentes uma síndrome potencialmente letal, chamada choque tóxico. Para isso, procurava identificar recetores dos LPS à superfície das células imunitárias do ratinho – verdadeiras “antenas moleculares” capazes de se ligarem aos LPS e de desencadearem uma resposta imunitária eventualmente excessiva e mortal. Foi então que descobriu, em 1998, que os ratinhos resistentes aos LPS – ou seja, os ratinhos que não desenvolviam um choque tóxico – eram portadores de uma mutação num gene muito parecido com o gene Toll das moscas-do-vinagre. O gene do ratinho comandava o fabrico de um recetor a que Beutler deu o nome de receptor Toll-like (TLR). A seguir, o investigador mostrou que o facto de os LPS se ligarem a esse recetor provoca uma reação inflamatória – o que, em caso de doses excessivas de LPS, causa a síndrome de choque tóxico.
Células dendríticas
Quanto ao trabalho de Steinman (1943-2011), de 68 anos, nascido em Montreal e investigador da Universidade Rockefeller, em Nova Iorque, diz respeito à segunda fase da reação imunitária – e, mais precisamente, às células da primeira frente encarregadas de alertar as da segunda frente quando os invasores conseguiram derrotar a imunidade inata. Essencialmente, Steinman descobriu, em 1973, um novo tipo de células imunitárias: as células dendríticas. A seguir, decidiu ver se estas células (que, sendo fagócitos, integram a imunidade inata) eram capazes de ativar os linfócitos T, componentes-chave da imunidade adaptativa e da memória imunitária contra inúmeras substâncias. Quando demonstrou, in vitro, que a presença de células dendríticas aumentava fortemente a atividade dos linfócitos T contra essas substâncias, o resultado foi recebido com ceticismo. Mas Steinman acabaria por demonstrar que as células dendríticas têm de facto a capacidade única de ativar os linfócitos T. O conjunto destes resultados tem potenciais aplicações médicas de peso. Por um lado, pode permitir o desenvolvimento de vacinas mais eficazes contra as infeções e de maneiras de estimular o sistema imunitário para o tornar capaz de atacar eficazmente os cancros. Por outro, pode levar a perceber por que é que, em certos casos, o sistema imunitário se vira contra o seu dono, para conseguir um dia tratar as doenças inflamatórias autoimunes”.

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