quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Destravar o sistema imunitário para combater cancro dá Nobel da Medicina

Andreia Freitas
James P. Allison e Tasuku Honjo descobriram novas formas de bloquear os travões do nosso sistema imunitário que se revelaram muito eficazes no tratamento do cancro. “Um novo paradigma na luta contra o cancro”, considerou o comité do Nobel.

O Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia de 2018 foi atribuído aos investigadores James P. Allison e Tasuku Honjo pelas descobertas relacionadas com o papel do sistema imunitário na luta contra o cancro, anunciou esta segunda-feira o comité do Nobel no Instituto Karolinska, em Estocolmo (Suécia). O prémio tem um valor de nove milhões de coroas suecas (cerca de 871 mil euros).

 “O Prémio Nobel deste ano assinala um marco na luta contra o cancro”, anunciou o comité do Nobel esta segunda-feira, acrescentando que as investigações dos dois laureados representam uma mudança de paradigma. “É um princípio totalmente novo. Neste caso, em vez de ter como alvo as células cancerosas, estas abordagens usam os travões das células do nosso sistema imunitário para travar o cancro.” A descoberta feita pelos dois laureados do Nobel da Medicina aproveita assim a capacidade do nosso sistema imunitário de atacar as células cancerosas estimulando-o e bloqueando os “travões” das células do sistema imunitário, os linfócitos T. Com esta “avaria” dos travões, o sistema imunitário acelera-se, investindo rapidamente nas células cancerosas. 

O norte-americano James P. Allison, do Centro para o Cancro M.D. Anderson da Universidade do Texas, em Houston, estudou uma proteína, a CTLA-4, que funciona como um travão no sistema imunitário, e o japonês Tasuku Honjo, da Universidade de Quioto, investigou uma outra proteína, a PD1, e mostrou que ela também funciona como um travão, mas com um mecanismo de acção diferente. Usando anticorpos nestas duas moléculas é possível “avariar” os travões e fazer com que o sistema imunitário ganhe em força e velocidade. As duas terapias, que se complementam, mostraram-se surpreendentemente eficazes na luta contra o cancro, com resultados comprovados em tumores como o melanoma, cancro dos pulmões e dos rins.

“Até às descobertas feitas pelos laureados da Medicina de 2018, o progresso no desenvolvimento clínico foi modesto”, considerou o comité, sublinhando que são os “resultados fantásticos” das investigações que justificaram a escolha. A terapia de controlo (checkpoint) imunitário, como é conhecida, revolucionou o tratamento do cancro e mudou fundamentalmente a maneira como encaramos esta doença.

Golfe e blues
Por volta das 9h30 da manhã, foi publicado um tweet na conta do Prémio Nobel que anunciava que o vencedor já tinha sido escolhido. “Alguém está a receber notícias emocionantes de Thomas Perlmann, o secretário-geral do comité do Nobel.” No entanto, a essa hora, apenas Tasuku Honjo recebeu a fantástica notícia. Ao que parece, às 11h, meia hora depois do anuncio oficial, o comité ainda não tinha conseguido contactar James Allison. 

Mais tarde, à margem de uma conferência sobre cancro que decorre em Nova Iorque, James Allison disse: “Sinto-me honrado por receber este prestigioso reconhecimento. Uma motivação inspiradora para os cientistas é simplesmente empurrar as fronteiras do conhecimento. Não comecei a estudar o cancro, mas a tentar entender a biologia dos Linfócitos T, essas células incríveis que viajam pelo nosso corpo e trabalham para nos proteger.” O interesse de James Allison por biologia terá começado quando ainda era uma criança, após receber um kit de química como prenda do seu pai.

Tasuku Honjo, que começou sua investigação nesta área depois da morte por cancro de estômago de um colega seu no curso de Medicina, também reagiu ao prémio: “Quero continuar a minha investigação para que esta terapia imunológica possa salvar mais doentes.”

A notícia do prémio atribuído a James Allison surgiu esta segunda-feira acompanhada por uma banda sonora de música blues. Além do seu trabalho científico, foram divulgados os vídeos que mostram uma faceta interessante deste investigador, que toca harmónica numa banda chamada “The CheckPoints”, composta por médicos imunologistas e oncologistas.
Sobre Tasuku Honjo sabemos que gosta de jogar golfe e é um apreciador de arte. Aliás, citado pelo The Guardian, o cientista japonês contou que já foi abordado num clube de golfe por um colega, que agradeceu as suas descobertas, especificamente relacionadas com o cancro de pulmão e que lhe terá dito que graças a ele podia jogar golfe. “Esse foi um momento feliz. Um comentário como esse faz-me mais feliz do que qualquer prémio.”

O caminho até ao prémio
O cancro mata milhões de pessoas todos os anos e é um dos maiores desafios de saúde da humanidade. Estimulando a capacidade inerente do nosso sistema imunitário de atacar as células tumorais, este ano, os laureados com o Nobel estabeleceram um princípio inteiramente novo para a terapia usada para combater o cancro”, anunciou o comité do Nobel, logo no início da comunicação oficial dos premiados deste ano.

E continuou: “O cancro inclui muitas doenças diferentes, todas caracterizadas pela proliferação descontrolada de células anormais com capacidade de disseminação para órgãos e tecidos saudáveis. Assim, há várias abordagens terapêuticas que estão disponíveis para o tratamento destas doenças, incluindo a cirurgia, radiação e outras estratégias.” Algumas destas estratégias que actualmente são usadas de forma rotineira receberam prémios Nobel em edições anteriores, nomeadamente os métodos para tratamento hormonal para cancro da próstata (Charles Huggins recebeu o Nobel em 1966), quimioterapia (George Hitchings and Gertrude Elion receberam o Nobel em 1988) e transplante de medula óssea para a leucemia (E. Donnall Thomas recebeu o Nobel de 1990). “No entanto, o cancro avançado permanece extremamente difícil de tratar e é necessário encontrar novas estratégias terapêuticas”, constata o comité do Nobel.

Recuando ao final do século XIX e início do século XX, encontramos o aparecimento do conceito de que a activação do sistema imunitário poderia ser uma estratégia para atacar as células tumorais. “Várias tentativas foram feitas para infectar pacientes com bactérias que conseguiriam activar o sistema de defesa do nosso organismo”, diz o comunicado de imprensa sobre a edição de 2018 do Prémio Nobel da Medicina. Porém, “esses esforços só tiveram efeitos modestos, ainda que uma variante dessa estratégia seja usada actualmente no tratamento do cancro de bexiga”. Era então preciso investigar mais e melhor esta frente de batalha. “Muitos cientistas envolveram-se numa intensa investigação e descobriram mecanismos fundamentais que regulam a imunidade e também mostraram como o sistema imunitário pode reconhecer as células cancerosas.” Apesar dos avanços, a descoberta de respostas que pudessem ser usadas de forma generalizada revelou-se muito difícil.

“A propriedade fundamental do nosso sistema imunitário é a capacidade de discriminar o ‘eu’ do ‘não-eu’, de modo a que as bactérias invasoras, vírus e outros perigos possam ser atacados e eliminados”, explica mais uma vez o comité. E os linfócitos T, um tipo de glóbulos brancos, são os principais intervenientes nesta defesa, são os nossos soldados que combatem invasores. “Os linfócitos T mostraram ter receptores que se ligam a estruturas reconhecidas como não próprias e tais interacções fazem com que o sistema imunitário seja activado e entre no modo “defesa”. Por outro lado, há proteínas que também podem actuar como aceleradores dos linfócitos T e que são necessárias para desencadear uma resposta imunitária completa. O equilíbrio entre aceleradores e travões é essencial para um controlo rigoroso e eficaz do sistema imunitário, assegurando que está suficientemente envolvido no ataque contra microrganismos estranhos e, ao mesmo tempo, evitando a activação excessiva que pode levar à destruição auto-imune de células e tecidos saudáveis.

“Um novo princípio”
Durante a década de 1990, no seu laboratório na Universidade da Califórnia, em Berkeley, James P. Allison estudou a proteína CTLA-4 de linfócitos T. Foi um dos vários cientistas que perceberam que a CTLA-4 funciona como um travão nos linfócitos T. O cientista norte-americano desenvolveu depois um anticorpo que poderia ligar-se à CTLA-4 e bloquear sua função. A primeira experiência foi realizada no final de 1994 e os resultados foram “espectaculares”, avalia o comité. “Ratinhos com cancro foram curados pelo tratamento com os anticorpos que inibem o travão e libertam a actividade dos linfócitos T antitumorais.” O comunicado de imprensa acrescenta ainda: “Apesar do pouco interesse da indústria farmacêutica, James Allison continuou os seus esforços para desenvolver a estratégia e a transformar numa terapia para humanos. Os resultados promissores surgiram de vários grupos a trabalhar nesta área, e em 2010 foi publicado um importante estudo clínico que mostrou os seus efeitos notáveis em doentes com melanoma avançado, um tipo de cancro de pele. Em vários doentes, os sinais de cancro desapareceram.”

Em 1992, alguns anos antes da descoberta de James Allison, Tasuku Honjo descobriu a PD-1, realizando uma série de experiências no laboratório da Universidade de Quioto. Também neste caso, os anticorpos contra a PD-1 inibem a função do travão, provocando uma “avaria” neste mecanismo que leva à activação dos linfócitos T e ao ataque “altamente eficiente” das células cancerosas. Os resultados mostraram que a PD-1, tal como a CTLA-4, funciona como um travão, mas através de um mecanismo diferente. “O desenvolvimento clínico para aplicação em humanos prosseguiu e, em 2012, um estudo importante demonstrou eficácia clara no tratamento de doentes com diferentes tipos de cancro. Os resultados foram impressionantes, levando à remissão a longo prazo em vários doentes com cancro metastático.”

Os trabalhos que conseguiram inibir os travões induzidos pela CTLA-4 e pela PD-1 e activar o sistema imunitário na luta contra o cancro também aceleraram a investigação neste campo. Actualmente, este tratamento conhecido como “terapia de checkpoint imunitário” é usado em doentes com vários tipos de cancro avançado. É verdade que, tal como os outros tratamentos disponíveis para o cancro, este não está isento de efeitos secundários, que, nalguns casos, podem ser bastante graves. O pior que pode acontecer é uma resposta imunitária hiperactiva que leva a reacções auto-imunes, descontroladas.

Segundo o comunicado de imprensa do comité do Nobel, das duas estratégias de tratamento, a terapia de checkpoint contra a PD-1 tem mostrado ser mais eficaz e resultados positivos estão a ser observados em vários tipos de cancro, incluindo dos pulmões, rins, linfoma e melanoma. Por outro lado, há novos estudos clínicos que parecem indicar que a terapia combinada, tendo como alvo a CTLA-4 e a PD-1, pode ser ainda mais eficaz. “Esta combinação mostrou bons resultados em doentes com melanoma. Mas há muitos outros testes de terapias de checkpoint imunitário que estão a ser feitos em muitos tipos de cancro e há também novas proteínas que funcionam no controlo do sistema imunitário que estão a ser objecto de investigação como possíveis alvos.”

Em 2017, o Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia foi atribuído a três cientistas norte-americanos, Michael Rosbash, Jeffrey Connor Hall e Michael Warren Young, por descobertas sobre os mecanismos moleculares que controlam o ritmo circadiano.




Sem comentários: