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segunda-feira, 14 de agosto de 2017
Editaram um gene das formigas e elas ficaram anti-sociais
Com a nova técnica de edição genética, a CRISPR, dois grupos de cientistas bloquearam um gene que é essencial para o funcionamento dos receptores de odores nas formigas. Sem esta “peça”, os animais deixaram de conseguir comunicar.
Formigas-biroi obreiras marcadas com cores para que se seguissem os seus comportamentos individuais
Quantos de nós já não ficámos uns segundos intrigados a observar tamanha capacidade de coordenação e organização das formigas num carreiro? Mesmo que nunca o tenha feito, a verdade é que, para os cientistas, as colónias de formigas são um óptimo modelo para estudar comportamentos sociais e explorar as suas bases genéticas e complexos sistemas biológicos. Estudar formigas não é tarefa fácil mas a nova técnica de edição de genes, a CRISPR, pode ser uma ajuda preciosa. Dois estudos diferentes publicados na revista Cell esta quinta-feira contam experiências muito semelhantes que mostram como usaram a técnica CRISPR/Cas9 para “apagar” um gene especial nas formigas e como isso afectou o seu comportamento.
Para comunicar, as formigas enviam sinais químicos mediados por feromonas. É assim que sabem para onde ir, como se alimentar e o que fazer na sua colónia. E há muita coisa para comunicar neste pequeno mundo disciplinado de castas onde podem existir rainhas, machos alados, obreiras e soldados, todos com funções e tarefas bem definidas.
Já se sabia que as formigas usavam as feromonas para comunicar mas ainda há muito por esclarecer quanto aos mecanismos, receptores e emissores, que estão por detrás destas “conversas”. Sabíamos também que o envio de sinais químicos estava dependente do olfacto e que as minúsculas formigas carregam um total de 350 genes para vários receptores de odores. E se os apagássemos? O comportamento social das formigas mudaria sem estes receptores que são uma base importante da comunicação? Dois grupos de cientistas testaram este cenário à procura de algumas respostas.
Como? Usando a CRISPR/cas9, que foi desenvolvida em 2012 e permite cortar e colar pedaços de ADN com grande precisão, ou seja, fazer a “edição” do genoma. Ainda na semana passada foi notícia a aplicação desta técnica a embriões humanos, para corrigir um gene responsável por uma doença cardíaca hereditária. Desta forma, apagou-se a mutação genética do ADN dos embriões humanos.
Mas editar cada um dos 350 genes das formigas era uma tarefa difícil e para uma vida inteira. A nova técnica de edição genética ofereceu-lhes o atalho que faltava: sabendo-se que todos os receptores de odores cujo fabrico é comandado por esses genes têm em comum uma outra proteína chamada “orco”, que é um co-receptor olfactivo fundamental para o funcionamento dos vários receptores de odores, os cientistas só tinham de usar a CRISPR/Cas9 para apagar esta proteína e a função dos 350 genes ficava bloqueada. Fácil, não? Nem por isso.
As antenas das formigas são os seus sensores químicos
A complexidade dos ciclos de vida das formigas obrigou os cientistas a procurar determinadas espécies, que se organizam de forma mais simples, para fazer as experiências. Assim, a equipa da Universidade de Rockefeller (nos Estados Unidos) escolheu as formigas-biroi (Ooceraea biroi), que são uma espécie originária do Japão e de Taiwan cuja reprodução ocorre sem fecundação, não existindo rainhas nas suas colónias, os ovos não são fertilizados e desenvolvem-se como clones, criando-se grandes quantidades de formigas geneticamente idênticas. Qualquer formiga obreira desta espécie pode ter ovos. “Isto significa que usando a CRISPR/Cas9 para modificar os ovos conseguimos fazer crescer rapidamente colónias que contém a mutação genética que queremos estudar”, explica Daniel Kronauer, principal autor deste estudo, num comunicado da Cell sobre estes trabalhos.
A outra equipa que inclui cientistas de várias universidades dos Estados Unidos (Nova Iorque, Arizona, Pensilvânia e Vanderbilt) optou por outra espécie, as formigas saltadoras que existem na Índia, no Sri Lanka e Sudeste da Ásia (Harpegnathos saltator). “Escolhemos esta espécie porque possui uma característica especial que torna mais fácil transformar as formigas obreiras em rainhas”, refere Claude Desplan, um dos principais autores do artigo.
O “alvo a abater” nos dois estudos era o mesmo: o tal gene orco. E quando este pedaço do genoma das formigas foi editado e apagado, o resultado foi idêntico. Quer as formigas clones quer as saltitonas mutadas mostraram-se incapazes de comunicar, indiferentes aos sinais de feromonas. Sem estas pistas químicas, o seu comportamento tornou-se anti-social, não conseguiam procurar alimentos e vagueavam, perdidas, fora do ninho e longe das colónias onde estavam as formigas que mantinham o gene orco a funcionar. As fêmeas mutadas também deixaram de cortejar os machos. Formigas independentes e indiferentes a tudo, portanto.
Da depressão ao autismo
Além desta mudança no comportamento que revelou que o olfacto é fundamental para manter a harmonia da colónia, os cientistas perceberam que o bloqueio deste gene afectou também a anatomia do cérebro das formigas (nas duas espécies), danificando as estruturas que são responsáveis por interpretar os odores.
As zonas relacionadas com o odor nos cérebros das formigas mutantes “eram pequenas e desorganizadas”, descreve um outro comunicado sobre o projecto com as formigas saltadoras indianas. “As formigas normais têm cerca de 275 glomérulos distintos, estruturas arredondadas nos lóbulos cerebrais das formigas que recebem sinais de odor das suas antenas. As formigas mutantes, descobriram os cientistas, tinham apenas 62 glomérulos e não estavam separados de forma nítida”, adianta o comunicado. Claude Desplan conclui: “O olfacto não é apenas necessário para o comportamento das formigas, também é necessário para um cérebro normal.”
Os cientistas não sabem se estas estruturas no cérebro das formigas morreram ou se nunca se desenvolveram. Essa será uma das muitas perguntas que ficou em aberto. Outra será perceber se este mecanismo nas formigas também é observado nos mamíferos, ou seja, como é que o desenvolvimento do cérebro está ligado aos estímulos sensoriais.
“Entender melhor, a nível bioquímico, como o comportamento é moldado pode ajudar-nos a perceber distúrbios que são marcados por mudanças na comunicação e interacção social, como a esquizofrenia e a depressão”, sublinha Shelley Berger, da Universidade da Pensilvânia e que participou no estudo com as formigas saltadoras indianas. Num comunicado da Universidade de Nova Iorque, Claude Desplan acrescenta ainda: “Embora o comportamento das formigas não se possa comparar directamente aos humanos, acreditamos que este trabalho aumenta o nosso conhecimento sobre a comunicação e pode vir a servir para moldar a concepção de futuras investigações sobre distúrbios como a esquizofrenia, depressão e o autismo.”
Além destes dois estudos que usaram a CRISPR, a Cell publica na mesma edição um terceiro artigo sobre experiências com formigas saltadoras indianas. Neste projecto, os cientistas não recorreram à CRISPR/Cas9, usaram antes a injecção de um químico (corazonina) para alterar o comportamento dos insectos, observando várias mudanças nas funções que desempenhavam mas também nos mecanismos químicos do cérebro e na activação de alguns genes. Roberto Bonasio, que também trabalha na Universidade da Pensilvânia e liderou este estudo, constata: “Insectos sociais como as formigas são modelos extraordinários para estudar como a regulação genética afecta o comportamento. Isto porque vivem em colónias compostas por indivíduos com os mesmos genomas mas que têm um conjunto de comportamentos muito diferentes.” Esta será, no fundo, apenas uma visão mais científica do tal carreiro de formigas que às vezes admiramos aos nossos pés.
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