Artigo escrito por Nicolau Ferreira, jornalista do Público, em 14/08/2012.
Uma equipa do Instituto Gulbenkian de Ciência percebeu como é que os espermatozóides ganham mobilidade: deve-se a um gene. A descoberta pode ter implicações no estudo da infertilidade humana
A genética não estava na lista dos fantasmas da reprodução quando Woody
Allen escreveu no seu filme O ABC do Amor, de 1972, a parte O que é
que acontece durante a ejaculação?, na qual a caricatura do cérebro de um
homem, que mais parece um quartel-general, se prepara para uma relação sexual.
Além da culpa religiosa, na forma de um padre, ter tentado dar cabo da erecção
ao homem, um espermatozóide interpretado por Woody Allen temia um desfecho
indigno para a sua vida, caso fi casse preso num preservativo, descobrisse que
o seu dono estava a ter uma relação homossexual ou a companheira tivesse tomado
a pílula e não houvesse óvulo para fertilizar.
Mas um problema mecânico bastante mais simples poderia provocar um falhanço
semelhante: o espermatozoide interpretado por Woody Allen poderia ter a cauda “partida”
e, assim, não conseguiria nadar até ao alvo. Na vida real, esta pode ser uma causa
de infertilidade com origem genética, de acordo com os resultados de uma equipa
de cientistas do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, que
descobriu o processo de formação das estruturas que dão mobilidade à cauda (o
flagelo) dos espermatozoides da mosca-da-fruta. Os resultados foram publicados
ontem na revista Developmental Cell.
Existem algumas células no corpo humano que se distinguem das outras por
formarem estruturas que se parecem com caudas e que abanam, explica Mónica
Bettencourt Dias, líder da equipa do IGC e autora do artigo. Os pulmões, por
exemplo, têm células à superfície com cílios,
que servem para expulsar partículas nocivas. No caso dos espermatozóides,
como não estão presos a nada, este movimento permite às células sexuais
masculinas moverem-se até ao óvulo e fecundá-lo. A equipa da investigadora
estudou moscas-da-fruta que tinham uma mutação no gene que comanda o fabrico da
proteína BLD10. “Estas moscas eram completamente estéreis”, revela a
investigadora. E na origem desta esterilidade está a estrutura que dá a
mobilidade à cauda do espermatozoide e permite que ele nade.
O grupo de Mónica Bettencourt Dias dedica-se a estudar o esqueleto das
células — um importante “órgão” que, entre várias coisas, é responsável por
separar correctamente os cromossomas durante a divisão celular, para que cada
célula fi que com os 23 pares no fi nal da divisão, nem mais, nem menos.
Uma das estruturas deste citoesqueleto são os microtúbulos: tubos finíssimos
que se formam pela acumulação de pequenas proteínas esféricas. Além de fazerem
a separação normal dos cromossomas durante a divisão das células, os
microtúbulos são responsáveis pela formação dos flagelos nos
espermatozóides e dos cílios nas células dos pulmões.
No caso dos espermatozóides da mosca-da-fruta, estes microtúbulos formam um
flagelo com dois milímetros, o que é 40 vezes maior do que o humano. A equipa,
que inclui também cientistas do Instituto de Tecnologia Química e Biológica, em
Oeiras, descobriu que o início da formação do flagelo acontece numa fase muito primária
do desenvolvimento dos espermatozóides e está intimamente ligado à proteína
cuja produção é comandada pelo gene BLD10.
O flagelo “tem um centro que coordena o movimento, para que este seja
correcto”, explica a investigadora. Esse centro é formado por dois microtúbulos,
que por sua vez estão rodeados por outros nove que fazem muma circunferência.
Com experiências feitas por Zita Carvalho Santos e imagens de microscopia
electrónica obtidas por Pedro Machado, a equipa percebeu que é a proteína do
gene BLD10 que permite o crescimento e a estabilização do primeiro microtúbulo central
e, depois, num segundo momento, permite o crescimento do segundo microtúbulo.
“Quando a proteína não está lá, não se forma nem o primeiro, nem o segundo
microtúbulo”, diz Mónica Bettencourt Dias, explicando que estas duas peças são
centrais para o movimento dos espermatozóides. “Um flagelo [sem as duas
estruturas da zona central] é como uma roda sem eixo.” No IGC, a equipa vai
agora tentar perceber como é que esta proteína funciona exactamente.
Ainda não se estudaram os homens inférteis com uma mutação na variante
humana deste gene. “É importante perceber isto.” "
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