Artigo escrito por Ana Gerschenfeld, jornalista do Público, em 05/07/2012
"É mesmo um bosão de Higgs, mas não se sabe se é “o” bosão de Higgs, ou
seja, exactamente a partícula subatómica teorizada há cerca de 50 anos para
explicar a existência da matéria. Este anúncio faz história.
“Estamos à beira de completar um capítulo da física e no
limiar do que poderá ser uma nova era de descobertas”, declarou ontem aos
jornalistas o norte-americano Joe Incandela, responsável máximo pela
experiência CMS — uma das duas que, utilizando o LHC, o maior acelerador de
partículas do mundo, procuram (ou melhor, procuravam até ontem) o já célebre mas
fugidio bosão de Higgs.
Incandela acabara de apresentar, numa sala ali ao pé cheia de físicos reunidos
no Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN), perto de Genebra, Suíça
(onde mora o LHC), os mais recentes resultados da “caça” ao bosão de Higgs
montada pela sua equipa ao longo de mais de dois anos.
Com visível emoção, tinha sido o primeiro a anunciar a descoberta, com
99,9999% de certeza, de uma nova partícula com uma massa de cerca de 125 GeV
(gigaelectrão-volts) — umas 133 vezes a massa do protão — que, em primeira
análise, apresenta o comportamento do bosão de Higgs. O anúncio fora acolhido
com aplausos pela plateia, na qual se encontravam quatro dos físicos teóricos que,
há cerca de 50 anos, postularam independentemente a existência do bosão de
Higgs — incluindo o próprio Peter Higgs, o britânico que deu o seu nome à
partícula.
Antes de mais, diga-se que o bosão de Higgs foi teorizado para explicar por
que é que a matéria existe. Acontece que o chamado Modelo-Padrão, actualmente a
melhor descrição das partículas subatómicas e das forças que as unem, exige que
uma partícula confira massa às outras. Sem ela, o universo que hoje observamos,
com as suas galáxias, planetas — e nós —,nunca teria surgido.
A sua detecção foi difícil, em particular porque se trata de uma partícula extremamente
instável. Apenas criada nas colisões de protões lançados uns contra os outros,
a velocidades próximas da da luz, nos aceleradores de partículas (tais como o LHC
e, antes dele, o norte-americano Tevatron), o bosão de Higgs desintegra-se para
dar origem a uma série de outras partículas — como fotões e quarks.
São essas colisões (500 milhões de milhões delas para obter os actuais resultados,
segundo os cálculos de Incandela) que os cientistas da experiências CMS e ATLAS
(a outra “caçadora” de Higgs no LHC) têm estado a analisar desde 2010, à
procura de sinais de que um bosão de Higgs por aí passou, embora apenas durante
uma ínfima fracção de segundo.
Seguiu-se a apresentação dos resultados da experiência ATLAS, pela sua responsável
máxima, a italiana Fabiola Gianotti. As duas experiências são independentes — e
as equipas até gostam de dizer que competem entre elas para ver quem chega
primeiro à meta —, mas ontem a sintonia dos resultados foi perfeita. Gianotti também
anunciou a descoberta, com 99,9999% de certeza, de uma nova partícula cuja
massa ronda os 126 GeV. Os aplausos redobraram.
Ainda não é possível dizer se este novo bosão é ou não diferente do bosão
previsto pelo Modelo-Padrão.“Isto é um bosão”, disse Rolf Heuer, director-geral
do CERN, respondendo às perguntas durante a conferência de imprensa. “Podemos
dizer que é um bosão de Higgs, mas não podemos dizer que é ‘o’ bosão de
Higgs.”
Acontece que, para além do Modelo- Padrão, há outros cenários (mais interessantes)
que também prevêem bosões de Higgs. “Ficaria satisfeitíssimo se esta partícula
não fosse o bosão de Higgs do Modelo-Padrão” disse Incandela. “Por exemplo,
sabemos que existe matéria escura no universo e se esta partícula não fosse
exactamente o bosão de Higgs do Modelo-Padrão poderia vir a funcionar como um
portal”, dando acesso a novos territórios do conhecimento.
Contudo, a determinação da identidade da nova partícula exige um estudo
muito aprofundado das suas propriedades e vai demorar. “É como se tivéssemos
acabado de avistar uma pessoa ao longe”, salientou Heuer. “Para sabermos se é o
nosso melhor amigo ou o seu gémeo, vamos ter de nos aproximar.
Tornem a perguntar dentro de três a quatro anos.” Diga-se ainda que também
seria possível — embora os especialistas não evoquem muito esta hipótese por
enquanto — que não se tratasse afinal de um bosão de Higgs, nem “convencional”
nem atípico, mas de uma partícula mais exótica, o que levaria ainda mais tempo a
desvendar.
O que poderá ser possível confirmar até ao fim do ano é se o bosão de
Higgs agora descoberto é uma partícula “escalar”— ou seja, uma partícula “que
não gira sobre si própria, por assim dizer”, como explicou ao PÚBLICO o francês
Marumi Kado, da equipa da ATLAS (os físicos diriam que o seu spin é
igual a zero). Ora, essa é “uma propriedade- chave do mecanismo de Higgs”, salientou,
que é o processo através do qual o bosão de Higgs confere massa às outras
partículas.
Entretanto, o LHC continua a “cuspir” dados, que batalhões de computadores e
cientistas espalhados pelo mundo vão analisando. Fá-lo-á até ao primeiro
trimestre de 2013, quando encerrará durante dois anos para manutenção e para
permitir quase duplicar a energia de colisão dos protões acelerados no seu
túnel circular subterrâneo com 27 quilómetros de perímetro. O encerramento agendado
para o fim deste ano, mas Heuer revelou ontem que, devido à descoberta, irá
permanecer em funcionamento mais “dois meses e meio a três meses”.
Uma coisa é certa, a partir de agora: esta descoberta histórica está a gerar
emoções fortes na cabeça dos físicos. Incandela, por exemplo, declarou ontem,
com algum lirismo: “Estamos a começar a olhar para o ‘tecido’ do universo como
nunca o tínhamos feito até aqui. Este bosão é algo de muito profundo. Ocupa um lugar
diferente, tem uma relação com o estado do universo, encarna de facto a
substância das partículas com as quais vivemos.”
Kado, físico de 41 anos que há apenas um mês foi nomeado responsável por
toda a investigação futura sobre o bosão de Higgs na experiência ATLAS,
expressou sentimentos igualmente intensos: “A partir de agora, vejo toda a
natureza de forma diferente”, afirmou. “E o bosão de Higgs está no centro de
tudo.”"
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