O velino ultrafino das bíblias medievais terá sido feito com a
pele de animais abortados? A resposta foi agora obtida utilizando uma
técnica muito simples e não invasiva.
Extracção de proteínas de um pergaminho utilizando um pedaço de borracha |
Sarah Fiddyment mostra o pergaminho de um acto jurídico |
Página de uma bíblia do século XIII
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Uma simples borracha em PVC permitiu a uma equipa internacional de
biólogos, arqueólogos, medievalistas e outros especialistas concluir que
o finíssimo pergaminho de que foram feitas, na Idade Média, as páginas
das primeiras “bíblias de bolso”, afinal não provém, como especulavam
alguns, da pele de fetos de animais. Os resultados foram publicados na
última edição da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
Milhares
de bíblias de bolso foram fabricados, a partir do século XIII,
sobretudo em França, mas também em Inglaterra, Itália e Espanha, lê-se
num comunicado a Universidade de Iorque (Reino Unido), onde o estudo foi
realizado. Alexander Devine, co-autor do estudo, e estudioso de
manuscritos antigos, explica no mesmo documento que a importância e a
influência das bíblias produzidas em grande escala ao longo do século
XIII foram “o resultado directo do seu formato em volume único e
portável, tornado possível pela combinação inovadora de estratégias de
miniaturização e de compressão conseguidas através do uso de pergaminho
extremamente fino”.
Como salientava, por outro lado e com alguma
ironia, um outro co-autor do estudo – Bruce Holsinger, medievalista da
Universidade da Virgínia (EUA) – num artigo da sua autoria publicado na
mesma semana na revista The New York Review of Books, o facto é
que “uma grande parte da nossa herança escrita sobrevive sob a forma de
uma grande massa de restos mortais de animais”.
E este
especialista fazia notar ainda que, no Reino Unido, continua a ser é
obrigatório “imprimir e conservar as cópias oficiais das leis aprovadas
pelo Parlamento em pele de animal, o que inspira ocasionalmente debates
em Westminster acerca da ética e da economia do comércio de pergaminho” –
tradição essa que poderá vir a acabar em breve, “para a grande
consternação da comunidade dos conservadores [de arquivos] e dos
especialistas de livros de arte”.
Velino uterino?
Seja como for, a utilização da palavra em latim abortivum em muitas fontes documentais para se referir ao pergaminho ultrafino desses volumes antigos levou alguns especialistas a sugerir que se tratava de “velino uterino” – isto é, que a pele de fetos de bovino, ovino e de outros animais de criação fora usada para o fabricar.
Seja como for, a utilização da palavra em latim abortivum em muitas fontes documentais para se referir ao pergaminho ultrafino desses volumes antigos levou alguns especialistas a sugerir que se tratava de “velino uterino” – isto é, que a pele de fetos de bovino, ovino e de outros animais de criação fora usada para o fabricar.
Pelo
seu lado, os críticos desta teoria retorquiam que não teria sido
sustentável criar animais apenas para abortar fetos com vista a produzir
as grandes quantidades de velino necessárias para as edições em grande
escala daquela altura. Ainda outra teoria estipulava que, para fabricar o
pergaminho, também teriam sido utilizados animais selvagens como
coelhos ou esquilos. Por último, havia quem propusesse que era possível
obter o velino a partir da pele de animais mais velhos através de uma
técnica específica de produção, hoje esquecida. E parece ser esta a
teoria que agora se confirma a partir do estudo.
O trabalho foi
realizado por cientistas do Reino Unido, França, Bélgica, Dinamarca,
Irlanda e Estados Unidos, liderados por Sarah Fiddyment e Matthew
Collins, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Iorque. Os
cientistas aplicaram pela primeira vez uma técnica não invasiva, dita de
“extracção triboeléctrica de proteínas”, para resolver esta
controvérsia de longa data. O método não podia ser mais simples e
imediato: consiste em esfregar suavemente o pergaminho com uma borracha
de PVC.
Na área da conservação, explicam os autores na PNAS,
é corrente utilizar-se borrachas de PVC, semelhantes às borrachas da
escola, para limpar os documentos antigos. Ora, como fazem ainda notar, o
método apresenta uma vantagem adicional: proteínas provenientes do
material antigo ficam agarradas à borracha ao mesmo tempo que a sujidade
– e podem portanto ser analisadas para determinar a sua origem. Já
agora, é graças à electricidade electroestática criada pela fricção (o
chamado efeito triboeléctrico) que a borracha consegue “apagar” a
sujidade e extrair as proteínas.
Os cientistas recolheram desta
forma proteínas animais no velino de 72 bíblias de bolso medievais
originárias de França, Inglaterra e Itália – e ainda, de 293 amostras de
pergaminho do século XIII, lê-se no comunicado. A espessura dos
pergaminhos variava de 0,03 a 0,28 milímetros.
Quando a seguir submeteram o material recolhido à clássica técnica de
espectroscopia de massa, os cientistas conseguiram determinar, em
particular, quais as espécies animais que tinham sido utilizadas para
fabricar o velino. Uma primeira conclusão: “Não encontrámos qualquer
vestígio de animais imprevistos”, diz Sarah Fiddyment, citada no mesmo
documento. “Porém, conseguimos identificar mais do que uma espécie de
mamífero num mesmo documento, e isso bate certo com a disponibilidade
das peles conforme o local de fabrico.”
Quanto ao facto de poder
tratar-se de pele de animais abortados, nada indica que esse seja o
caso: “Os nossos resultados sugerem que o velino ultrafino não provém
necessariamente do uso de animais abortados ou recém-nascidos com uma
pele ultrafina, mas podem [pelo contrário] reflectir a utilização de um
processo de produção que permitia transformar em velino de igual
qualidade e finura a pele de mamíferos em maturação de diversas
espécies”, acrescenta a investigadora.
A prova disso é o facto
que, depois de concluído este trabalho, o co-autor e especialista em
conservação de pergaminhos Jirí Vnoucek conseguiu recriar pergaminhos
semelhantes ao “velino uterino" a partir de peles antigas. “É mais uma
questão de utilizar a tecnologia certa de fabrico do que de recorrer à
pele de animais uterinos”, explica. “Claro que as peles de animais mais
novos são as melhores para produzir pergaminho fino, mas posso imaginar
que toda a pele era utilizada e que nada era deitado fora.”
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