sábado, 18 de outubro de 2014

Microscopia pontilhística: ver para além dos limites

Texto de Mariana G. Pinho, Professora associada no Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora do projecto Protein Localization, financiado pelo European Research Council, publicado pelo jornal Público em 17/10/2014.
 
 O primeiro microscópio comercial de microscopia de super-resolução em Portugal está no Instituto de Tecnologia Química e Biológica, em Oeiras, há cerca de um ano.
 
Com a invenção do microscópio, no final do século XVI, descobriram-se novos mundos à nossa volta e dentro de nós próprios. Desde então, a microscopia óptica tornou-se instrumental para o conhecer o funcionamento das células, com crescente nível de detalhe. Já no século XX, a combinação da microscopia óptica com técnicas de fluorescência, permitiu distinguir moléculas específicas (uma proteína, um gene, etc.) de todos os outros componentes celulares, através de marcação com proteínas ou corantes que emitem fluorescência.
 
Mas a microscopia óptica tem uma grande limitação: a sua capacidade de resolução, ou seja, a distância mínima a que dois objetos têm de estar para serem identificados como dois pontos distintos no microscópio, é de cerca de 0,25 micrómetros (ou 0,25 milésimos de milímetro). Se pensarmos que várias estruturas nas nossas células são dez vezes mais pequenas ou que uma bactéria pode ter apenas um micrómetro de diâmetro, rapidamente percebemos que esta limitação constitui um enorme obstáculo.
 
O limite da resolução da microscopia óptica resulta diretamente da difração da luz quando esta passa por uma pequena abertura, como a objectiva de um microscópio, pelo que foi considerado intransponível até à investigação de Stefan Hell, Eric Betzig e William Moerner, galardoados com o prémio Nobel da Química de 2014. Os dois últimos, trabalhando independentemente, estabeleceram os princípios da single-molecule microscopy, ou microscopia de localização, uma técnica de super-resolução que permite, literalmente, determinar a localização e dinâmica de moléculas individuais, mesmo quando muito próximas, dentro de células vivas.
 
Mas como foi possível ultrapassar o limite de resolução do microscópio? A solução engenhosa consistiu, não em tentar separar os pontos muito próximos no espaço, mas em separá-los no tempo. Olhando para o céu, não conseguimos distinguir duas estrelas muito próximas, mas se fosse possível acender uma estrela de cada vez, seria fácil distingui-las.
 
Em microscopia de localização, utilizamos proteínas ou corantes fotoactiváveis, cuja emissão de luz pode ser ligada e desligada. Assim, em vez de visualizarmos simultaneamente todas as moléculas proteicas que constituem uma estrutura celular, visualizamos uma molécula de cada vez e matematicamente calculamos com grande precisão (dez vezes superior à microscopia óptica convencional) a posição de cada molécula que emite luz.
 
Para reconstituirmos a estrutura celular completa é depois necessário justapor todos os pontos originários de milhares de imagens adquiridas. No fundo, é como se tirássemos uma sucessão de fotografias a uma árvore de Natal em que as luzes se acendessem uma de cada vez. Da sobreposição de todas as fotografias seria possível determinar a estrutura que ilumina a árvore.
 
A microscopia de localização é também conhecida por pointillistic microscopy, ou microscopia pontilhística, por analogia à técnica de pintura de pontilhismo usada pelos artistas neo-impressionistas, em que pequenos pontos de cor são dispostos na tela em padrões que formam uma imagem. A super-resolução equivale a termos na mão um pincel fino, com o qual podemos pintar cada detalhe, cada pestana, cada fio de cabelo.
 
Este método foi usado pela primeira vez por Betzig em 2006 e desde então tem sido aplicado em áreas muito diferentes das ciências da vida, por exemplo para medir a velocidade de proteínas que reparam mutações no ADN, para perceber o efeito do colesterol em membranas, determinar a estrutura do núcleo das nossas células ou como é que os neurónios comunicam entre si.
 
O primeiro microscópio comercial de microscopia de super-resolução em Portugal foi adquirido no âmbito de um projecto financiado pelo European Research Council e está há cerca de um ano no Instituto de Tecnologia Química e Biológica (em Oeiras), da Universidade Nova de Lisboa. Desde então tem sido usado intensamente para visualizar os detalhes e a dinâmica das estruturas responsáveis pela divisão celular e pela síntese da parede celular na bactéria patogénica Staphylococcus aureus. Este processo de síntese da parede é o alvo de vários dos antibióticos mais úteis do ponto de vista clínico, cuja utilização está cada vez mais ameaçada pelo aparecimento de bactérias resistentes à sua acção. Podemos agora visualizar, com um grau inédito de detalhe, o que acontece às células bacterianas durante o processo de divisão, de morte ou de resistência aos antibióticos.

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