quinta-feira, 17 de julho de 2014

O ADN humano pode ter apenas 19 mil genes e talvez só mais dez do que o do ratinho

Texto de Ana Gerschenfeld publicado pelo jornal Público em 10/07/2014.
Pensava-se que o nosso ADN continha uns 100 mil genes, mas esse número foi descendo drasticamente. A mais recente análise aponta para apenas 19 mil genes, 99% dos quais já existiam antes do aparecimento dos primatas.
 

O número de genes que distinguem os ratinhos dos humanos poderá ser inferior a dez
Uma equipa de cientistas em Espanha “contou” literalmente o número de genes presentes no ADN humano – ou seja, as sequências genéticas que codificam proteínas – e chegou à conclusão de que são provavelmente cerca de 19 mil, o que reduz em mais de 1500 o número anteriormente avançado. Os seus resultados foram publicados há dias na revista Human Molecular Genetics.
 
A molécula de ADN dos seres vivos, das bactérias aos primatas, é composta por quatro pequenas moléculas de base. No caso dos seres humanos, o ADN tem cerca de 3000 milhões de pares destas moléculas, encadeadas numa dupla hélice.
 
Apenas determinados fragmentos do genoma são genes, ou seja instruções de fabrico das proteínas que formam as células, os tecidos e os órgãos do nosso corpo. O resto das sequências que compõem o ADN não codifica qualquer proteína – os cientistas falam em “ADN não codificante” –, mas sabe-se hoje que tem um papel importante no controlo da actividade dos genes.
 
Há pouco mais de dez anos, “antes de o primeiro rascunho [da sequência total] do genoma humano ser publicado, os especialistas pensavam que o número de genes rondava os 40 mil a 100 mil”, escreve no seu artigo a equipa de Alfonso Valencia e Michael Tress, do Centro Nacional de Investigações Oncológicas (CNIO) espanhol. “A sequenciação inicial reduziu drasticamente esse número, sugerindo que o número final se situaria entre 26 mil e 30 mil genes. E com a publicação da versão final do genoma, em 2004, o número de genes que codificam proteínas foi revisto mais uma vez em baixa, para 20 mil a 25 mil.” E em 2007, um estudo apontara para a existência apenas uns 20.500 genes humanos.
 
Entretanto, os especialistas começaram a analisar as proteínas fabricadas pelo corpo humano, para daí remontar até às sequências, no ADN, dos genes que as codificam, construindo desta forma, passo a passo, um catálogo das proteínas humanas ou “proteoma”.É esta abordagem, baseada numa técnica dita de espectrometria de massa, que está no centro do novo estudo.
 
Estes cientistas começaram por criar uma nova versão do catálogo das proteínas integrando resultados de sete estudos em grande escala de espectrometria de massa, obtidos a partir da análise de mais de 50 tecidos diferentes do corpo humano, explica em comunicado o CNIO. Identificaram assim um pouco mais de 12 mil proteínas humanas diferentes.
 
Porém, quando foram ver quais eram os genes que codificavam essas 12 mil proteínas, aperceberam-se de que, para as codificar todas, eram precisas menos de 60% das sequências de ADN humano até agora consideradas como sendo genes codificantes.
 
“Embora as limitações técnicas das análises do proteoma sejam uma das causas mais prováveis para termos detectado as proteínas de menos de 60% [da lista actual de] genes, pode haver outra razão para isso ter acontecido”, escrevem ainda os autores. A saber, é possível que algumas das sequências que se pensava codificarem proteínas não codifiquem, afinal, proteína nenhuma.
 
Para aprofundar esta questão, a equipa considerou a seguir um conjunto de 2001 (supostos) genes potencialmente não codificantes. E de facto, quando analisaram as suas sequências, apenas detectaram capacidade de comandar o fabrico de proteínas em menos de 6% desses genes. “Os nossos resultados sugerem que muitos desses genes não codificam proteínas em circunstância alguma”, lê-se ainda no artigo.
 
Segundo os autores, é possível que “até 1800 sequências actualmente consideradas como sendo genes não codifiquem proteínas e que o número de genes funcionais no genoma (…) esteja mais próximo de 19 mil do que de 20 mil”.
 
E mais: por incrível que pareça, mais de 90% desses 19 mil genes que produzem proteínas surgiram há centenas de milhões de anos – e mais de 99% já existiam antes da emergência dos primatas, há uns 50 milhões de anos.
 
“O número de genes novos que separa os seres humanos dos ratinhos [ou seja, os genes que evoluíram depois da emergência dos primatas] poderá mesmo ser inferior a dez”, diz o co-autor David Juan no mesmo comunicado. Uma estimativa que contrasta fortemente com os cerca de 500 genes específicos dos primatas actualmente catalogados – e que faz dizer aos autores que esses genes “vão ter de ser reavaliados”.
 
A confirmarem-se estes resultados, o número dos nossos genes será semelhante ao do de espécies como Caenorhabditis elegans, um verme com apenas um milímetro de comprimento – e muito menos complexo do que nós.
 
“Ninguém teria imaginado, há uns anos, que um conjunto tão pequeno de genes pudesse fabricar algo de tão complexo” como o corpo humano, diz Valencia. De facto, pensa-se hoje que a complexidade poderá residir, não nos genes em si, mas na forma como eles funcionam sob o controlo dos 90% de ADN não codificante que existe no nosso genoma.

Seja como for, os resultados, concluem os autores, deverão ter um grande impacto na interpretação dos estudos biomédicos (na área do cancro, por exemplo), onde actualmente se incluem como genes sequências que poderão ser não codificantes.

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