O sexo a atribuir a alguém nem sempre é claro. Algumas
pessoas têm características biológicas de homem e mulher, encontrando-se numa
situação de intersexo. Esta discussão ganha visibilidade com a Alemanha a
permitir, a partir de Novembro, que uma criança seja registada civilmente sem
um sexo definido à nascença: há uma terceira opção, que deixa o sexo em branco
A determinação do sexo com que se nasce pode parecer uma questão simples, que
seria facilmente resolvida com um exame visual aos genitais externos (pénis, vulva
e vagina) e, se isso não fosse esclarecedor, certamente que os testes genéticos
permitiriam sempre encontrar uma resposta clara. Só que a fronteira biológica
entre um homem e uma mulher pode ser ambígua, a começar nos genitais externos e
a acabar nos cromossomas e genes.
Tendo especificamente em conta a visível ambiguidade genital com que nascem
algumas pessoas, a Alemanha permitirá, a partir de Novembro, que o registo civil
de uma criança inclua uma terceira opção, a de sexo indefinido, com o sexo
civil a ficar assim em branco, o que exigirá, segundo a ministra da Justiça
alemã, Sabine Leutheusser-Schnarrenberger, uma reforma na emissão dos
documentos de identificação alemães. Alguns juristas sugerem mesmo que, nesse caso,
em substituição das letras M e F, se utilize o X.
Mais tarde, depois de uma série de estudos cromossómicos, genéticos, hormonais
e anatómicos, entre outros, essa pessoa em situação de intersexo poderá ver-lhe
atribuído um sexo civil definido. A Alemanha tornar-se-á o primeiro país da
Europa — onde se estima que uma em cada 5000 crianças nasça com sexo indefinido
— a dar esta opção aos seus cidadãos, que já existe na Austrália e na Nova
Zelândia, onde o terceiro tipo sexual pode ser indicado em documentos como o
passaporte.
Estes países reconhecem que nem tudo se esgota num sistema de dois sexos.
Que, além do sexo masculino e feminino, há pessoas intersexuais, com
características masculinas e femininas, como os hermafroditas e os
pseudo-hermafroditas (num hermafrodita há simultaneamente tecido ovárico e
testicular, enquanto um pseudo-hermafrodita só tem ou testículos ou ovários e
os genitais externos são do outro sexo).
Devido à complexidade que o sexo de uma pessoa pode ter, Jorge Sequeiros, director
do Centro de Genética Preditiva e Preventiva do Instituto de Biologia Molecular
e Celular da Universidade do Porto, aplaude a iniciativa alemã. “É uma
excelente ideia a adoptar em Portugal. Falo nisso aos meus alunos há muito
tempo. As situações de ambiguidade genital externa são raras, mas têm uma
frequência que não é tão baixa como se julga. Muitas vezes são escondidas”,
refere o geneticista. “Há a necessidade de fazer estudos muito demorados, que habitualmente
não são compatíveis com os prazos legais do registo civil. Nessas situações, é
preferível os pais não registarem a criança e pagarem a multa do que fazer um registo
com um nome que implica um sexo civil, que dita um sexo educacional.”
Até porque a ambiguidade dos genitais externos é geralmente uma manifestação
de discrepâncias entre os diversos “conceitos de sexo”, como lhes chama Jorge
Sequeiros, existentes numa pessoa. Pode haver contradições entre o sexo genital
de alguém e o seu sexo gonádico (testículos e ovários), o seu sexo
cromossómico, genético e hormonal. Para que, entre possíveis discrepâncias nos
vários conceitos de sexo, uma pessoa siga o caminho que mais se adeque a ela,
através de tratamentos cirúrgicos e hormonais, é necessário fazer os estudos
aprofundados mencionados por Jorge Sequeiros. “Os estudos servem para fazer uma
atribuição do sexo civil tendo em atenção o que será o sexo mais provável
sentido pela própria pessoa — o sexo psicológico —, que virá a seguir mais
tarde.”
Jorge Sequeiros não se está a referir à orientação sexual nem à
transexualidade. Neste último caso, uma pessoa até pode ter todos os níveis de
sexo bem definidos entre si e sentir que quer ser do sexo oposto.
Mulheres XY e homens XX
As discrepâncias entre os diferentes níveis de sexo têm sido
particularmente publicitadas no mundo do atletismo. É que foi aí que começaram as
verificações de sexo, obrigatórias no início dos anos 1960, pela Federação Internacional
de Atletismo e pelo Comité Olímpico Internacional, para evitar que homens se
disfarçassem de mulheres nas provas femininas de atletismo, uma vez que, em
princípio, teriam mais vantagens competitivas.
Inicialmente, as mulheres desfilavam nuas à frente de médicos. No fim
daquela década, as averiguações passaram a servir-se da genética. Geralmente, os
cromossomas sexuais humanos — o 23.º par — são compostos por XY nos homens e
por XX nas mulheres. Supostamente, a simples identificação dos cromossomas XX ou
XY deveria dar uma resposta clara. Seguindo à risca estas regras, só as atletas
com dois cromossomas X seriam consideradas mulheres.
Porém, a realidade revelou-se tudo menos a preto e branco, e os organismos internacionais
de desporto acabaram por pôr fi m, na década de 1990, às averiguações do sexo
obrigatórias, abandonando a ideia de que há uma fronteira bem definida entre um
homem e uma mulher.
O que separa os homens das mulheres não se resume a um Y. Há mulheres que
são XY — como é o caso famoso da barreirista espanhola María José Martínez
Patiño (ver “Não se é mum homem só por ter o cromossoma Y”, PÚBLICO de
30/08/2009).
Em 1985, com 24 anos, Patiño foi impedida de competir nos Jogos
Universitários Mundiais no Japão. “O Gabinete Central de Controlo da
Feminilidade descobriu nela um cromossoma Y. A atleta foi desconsiderada na imprensa,
perdeu a bolsa desportiva e foi desqualificada”, relata o geneticista britânico
Steve Jones no seu livro Y — A Descendência do Homem (Gradiva). “Perdi
amigos, o meu namorado, a esperança e a energia”, contou a atleta, em 2005, na
revista The Lancet.
Tal como Patiño, certas mulheres XY podem herdar uma deficiência nos
receptores da testosterona, a porta de entrada desta hormona sexual masculina
nas células. “Algumas não mostram qualquer sinal claro de anormalidade e vivem
como mulheres, não cientes do seu estado ambíguo”, conta Steve Jones no livro.
Conforme o tipo de deficiências na fechadura da testosterona e de outras
hormonas sexuais masculinas (androgénios), assim a via para a masculinização de
uma pessoa pode ficar bloqueada completa ou parcialmente. “Tais enganos podem
não causar mais do que uma ligeira perda de masculinização, mas podem também
levar ao nascimento de um bebé, à primeira vista, do sexo feminino”, refere
ainda Steve Jones.
Esta situação é conhecida pela síndrome da insensibilidade androgénica, ou
síndrome do testículo feminizante. É como se os tecidos que deveriam sofrer uma
virilização, pela recepção de hormonas masculinas, fossem cegos à sua presença.
Na forma completa desta síndrome, a pessoa tem um Y e genes masculinizantes como
o SRY, que geralmente se encontra naquele cromossoma e que é importante para
que se desenvolvam os testículos (onde se produz a testosterona, que origina
maior massa muscular). Os testículos começaram a desenvolver-se no interior do abdómen,
como costuma acontecer, só que não desceram até à posição normal nas bolsas
escrotais: ficaram dentro do abdómen, dos grandes lábios vaginais ou das
virilhas. E não há escroto. Mas os genitais externos são de mulher, tal como as
características sexuais secundárias, como o desenvolvimento mamário, a
distribuição da gordura, a ausência de pêlos. Há uma feminização completa.
Olhando para as camadas biológicas desta pessoa, ela é um homem do ponto de
vista genético, cromossómico, hormonal e das gónadas (testículos, no caso). Mas
é mulher do ponto de vista genital, das características sexuais secundárias e,
por isto, civil.
Se a síndrome do testículo feminizante for incompleta, então pode haver uma
ambiguidade nos genitais externos: por
exemplo, um clítoris muito desenvolvido ou um pénis pouco desenvolvido, a que é
difícil chamar uma coisa ou outra; ou uma estrutura a que não pode chamar-se escroto
ou grandes lábios vaginais.
Completa ou incompleta, com esta síndrome é-se pseudo-hermafrodita. Aliás,
veio a revelar-se que a atleta sul-africana Caster Semenya — que em 2009 pôs o
mundo a discutir a questão das pessoas intersexuais, ao alcançar resultados
fulgurantes — é pseudo-hermafrodita. Não tem ovários nem útero, mas atrás da
vagina tinha testículos ocultos.
Mencionando outra situação, também há homens XX — ou seja, sem Y. A
introdução do gene SRY noutro cromossoma, devido a um erro, origina um homem
que é XX. Do ponto de vista dos cromossomas são mulheres, mas a nível genético,
hormonal e dos genitais são homens.
A propósito do caso de Caster Semenya, em 2009, Jorge Sequeiros resumia assim
os vários conceitos de sexos: “Há um sexo genético, o que quer dizer que há
genes masculinizantes e feminizantes. Estes genes determinam o sexo gonádico —
as gónadas, que vão evoluir no sentido de testículos ou ovários, e produzem hormonas
masculinas e femininas, o que determina o sexo hormonal. E o sexo hormonal
determina o desenvolvimento dos genitais internos e externos, que por sua vez
vão determinar o sexo civil. Pode haver interferências, que fazem com que haja
contradições entre os vários níveis de sexo.”
O resultado é uma pessoa intersexual. Tanto quanto Jorge Sequeiros se
lembra, esta questão não foi discutida no Conselho Nacional de Ética para as
Ciências da Vida, órgão consultivo do qual é membro.
“Irá fazer-se”
Em Portugal, uma possibilidade legal idêntica à da Alemanha não começou
sequer a ser discutida, mas “é um caminho que tem de se fazer e irá fazer-se”,
afirmou ao PÚBLICO José Soeiro, dirigente do BE que esteve ligado à elaboração e
aprovação da lei da mudança de identidade de género. Sublinhando que a
legislação alemã se dirige a intersexuais e no momento do nascimento, José
Soeiro frisou que “é um reconhecimento legal de uma realidade que existe, mas
que não tem ainda moldura legal, pelo que é sempre um acto positivo”. O
dirigente do BE salientou ainda que esta legislação é importante, até porque
abre a porta ao “repensar das práticas médicas actuais” e pode levar a “mudar a
prática actual em que existe sobre este assunto um problemático poder
discricionário dos médicos que intervêm e operam as crianças à nascença”.
Igualmente Miguel Vale de Almeida, que como deputado independente eleito
pelo PS esteve na origem da lei da identidade de género, se congratula com a
possibilidade de esta medida vir a ser adoptada num país europeu. Falando como antropólogo,
Miguel Vale de Almeida, que é professor do ISCTE, destaca que “há duas coisas
nesta lei que são óbvias”. A primeira é que “irá acabar com as operações feitas
compulsivamente à nascença de definição de sexo masculino ou feminino que dão
bronca mais tarde”. A segunda consequência é que “deixa em aberto a identidade de
sexo, deixa aberto o neutro de sexo, que pode ser definido depois. Mas pode
deixar também a identidade de género para quem a queira definir mais tarde”.
Desenvolvendo esta segunda questão, Vale de Almeida diz que a primeira
variante “é simples porque tem lado médico”, a segunda, a de “deixar em aberto
para a pessoa optar mais tarde sobre a sua identidade, é mais complexa porque coloca
questões ideológicas sobre as concepções de género”. E conclui: “Andamos há
demasiado tempo com o binarismo entre feminino e masculino, que é autolimitativo,
é altura de começar a resolver isso.”
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