sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O sexo pode ficar indefinido no BI?

Texto de Teresa Firmino e São José Almeida publicado pelo jornal Público em 21/08/2013.

O sexo a atribuir a alguém nem sempre é claro. Algumas pessoas têm características biológicas de homem e mulher, encontrando-se numa situação de intersexo. Esta discussão ganha visibilidade com a Alemanha a permitir, a partir de Novembro, que uma criança seja registada civilmente sem um sexo definido à nascença: há uma terceira opção, que deixa o sexo em branco


A determinação do sexo com que se nasce pode parecer uma questão simples, que seria facilmente resolvida com um exame visual aos genitais externos (pénis, vulva e vagina) e, se isso não fosse esclarecedor, certamente que os testes genéticos permitiriam sempre encontrar uma resposta clara. Só que a fronteira biológica entre um homem e uma mulher pode ser ambígua, a começar nos genitais externos e a acabar nos cromossomas e genes.

Tendo especificamente em conta a visível ambiguidade genital com que nascem algumas pessoas, a Alemanha permitirá, a partir de Novembro, que o registo civil de uma criança inclua uma terceira opção, a de sexo indefinido, com o sexo civil a ficar assim em branco, o que exigirá, segundo a ministra da Justiça alemã, Sabine Leutheusser-Schnarrenberger, uma reforma na emissão dos documentos de identificação alemães. Alguns juristas sugerem mesmo que, nesse caso, em substituição das letras M e F, se utilize o X.

Mais tarde, depois de uma série de estudos cromossómicos, genéticos, hormonais e anatómicos, entre outros, essa pessoa em situação de intersexo poderá ver-lhe atribuído um sexo civil definido. A Alemanha tornar-se-á o primeiro país da Europa — onde se estima que uma em cada 5000 crianças nasça com sexo indefinido — a dar esta opção aos seus cidadãos, que já existe na Austrália e na Nova Zelândia, onde o terceiro tipo sexual pode ser indicado em documentos como o passaporte.

Estes países reconhecem que nem tudo se esgota num sistema de dois sexos. Que, além do sexo masculino e feminino, há pessoas intersexuais, com características masculinas e femininas, como os hermafroditas e os pseudo-hermafroditas (num hermafrodita há simultaneamente tecido ovárico e testicular, enquanto um pseudo-hermafrodita só tem ou testículos ou ovários e os genitais externos são do outro sexo).

Devido à complexidade que o sexo de uma pessoa pode ter, Jorge Sequeiros, director do Centro de Genética Preditiva e Preventiva do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto, aplaude a iniciativa alemã. “É uma excelente ideia a adoptar em Portugal. Falo nisso aos meus alunos há muito tempo. As situações de ambiguidade genital externa são raras, mas têm uma frequência que não é tão baixa como se julga. Muitas vezes são escondidas”, refere o geneticista. “Há a necessidade de fazer estudos muito demorados, que habitualmente não são compatíveis com os prazos legais do registo civil. Nessas situações, é preferível os pais não registarem a criança e pagarem a multa do que fazer um registo com um nome que implica um sexo civil, que dita um sexo educacional.”

Até porque a ambiguidade dos genitais externos é geralmente uma manifestação de discrepâncias entre os diversos “conceitos de sexo”, como lhes chama Jorge Sequeiros, existentes numa pessoa. Pode haver contradições entre o sexo genital de alguém e o seu sexo gonádico (testículos e ovários), o seu sexo cromossómico, genético e hormonal. Para que, entre possíveis discrepâncias nos vários conceitos de sexo, uma pessoa siga o caminho que mais se adeque a ela, através de tratamentos cirúrgicos e hormonais, é necessário fazer os estudos aprofundados mencionados por Jorge Sequeiros. “Os estudos servem para fazer uma atribuição do sexo civil tendo em atenção o que será o sexo mais provável sentido pela própria pessoa — o sexo psicológico —, que virá a seguir mais tarde.”

Jorge Sequeiros não se está a referir à orientação sexual nem à transexualidade. Neste último caso, uma pessoa até pode ter todos os níveis de sexo bem definidos entre si e sentir que quer ser do sexo oposto.

 
Mulheres XY e homens XX
As discrepâncias entre os diferentes níveis de sexo têm sido particularmente publicitadas no mundo do atletismo. É que foi aí que começaram as verificações de sexo, obrigatórias no início dos anos 1960, pela Federação Internacional de Atletismo e pelo Comité Olímpico Internacional, para evitar que homens se disfarçassem de mulheres nas provas femininas de atletismo, uma vez que, em princípio, teriam mais vantagens competitivas.

Inicialmente, as mulheres desfilavam nuas à frente de médicos. No fim daquela década, as averiguações passaram a servir-se da genética. Geralmente, os cromossomas sexuais humanos — o 23.º par — são compostos por XY nos homens e por XX nas mulheres. Supostamente, a simples identificação dos cromossomas XX ou XY deveria dar uma resposta clara. Seguindo à risca estas regras, só as atletas com dois cromossomas X seriam consideradas mulheres.

Porém, a realidade revelou-se tudo menos a preto e branco, e os organismos internacionais de desporto acabaram por pôr fi m, na década de 1990, às averiguações do sexo obrigatórias, abandonando a ideia de que há uma fronteira bem definida entre um homem e uma mulher.

O que separa os homens das mulheres não se resume a um Y. Há mulheres que são XY — como é o caso famoso da barreirista espanhola María José Martínez Patiño (ver “Não se é mum homem só por ter o cromossoma Y”, PÚBLICO de 30/08/2009).

Em 1985, com 24 anos, Patiño foi impedida de competir nos Jogos Universitários Mundiais no Japão. “O Gabinete Central de Controlo da Feminilidade descobriu nela um cromossoma Y. A atleta foi desconsiderada na imprensa, perdeu a bolsa desportiva e foi desqualificada”, relata o geneticista britânico Steve Jones no seu livro Y — A Descendência do Homem (Gradiva). “Perdi amigos, o meu namorado, a esperança e a energia”, contou a atleta, em 2005, na revista The Lancet.

Tal como Patiño, certas mulheres XY podem herdar uma deficiência nos receptores da testosterona, a porta de entrada desta hormona sexual masculina nas células. “Algumas não mostram qualquer sinal claro de anormalidade e vivem como mulheres, não cientes do seu estado ambíguo”, conta Steve Jones no livro.

Conforme o tipo de deficiências na fechadura da testosterona e de outras hormonas sexuais masculinas (androgénios), assim a via para a masculinização de uma pessoa pode ficar bloqueada completa ou parcialmente. “Tais enganos podem não causar mais do que uma ligeira perda de masculinização, mas podem também levar ao nascimento de um bebé, à primeira vista, do sexo feminino”, refere ainda Steve Jones.

Esta situação é conhecida pela síndrome da insensibilidade androgénica, ou síndrome do testículo feminizante. É como se os tecidos que deveriam sofrer uma virilização, pela recepção de hormonas masculinas, fossem cegos à sua presença. Na forma completa desta síndrome, a pessoa tem um Y e genes masculinizantes como o SRY, que geralmente se encontra naquele cromossoma e que é importante para que se desenvolvam os testículos (onde se produz a testosterona, que origina maior massa muscular). Os testículos começaram a desenvolver-se no interior do abdómen, como costuma acontecer, só que não desceram até à posição normal nas bolsas escrotais: ficaram dentro do abdómen, dos grandes lábios vaginais ou das virilhas. E não há escroto. Mas os genitais externos são de mulher, tal como as características sexuais secundárias, como o desenvolvimento mamário, a distribuição da gordura, a ausência de pêlos. Há uma feminização completa.

Olhando para as camadas biológicas desta pessoa, ela é um homem do ponto de vista genético, cromossómico, hormonal e das gónadas (testículos, no caso). Mas é mulher do ponto de vista genital, das características sexuais secundárias e, por isto, civil.

Se a síndrome do testículo feminizante for incompleta, então pode haver uma ambiguidade nos genitais  externos: por exemplo, um clítoris muito desenvolvido ou um pénis pouco desenvolvido, a que é difícil chamar uma coisa ou outra; ou uma estrutura a que não pode chamar-se escroto ou grandes lábios vaginais.

Completa ou incompleta, com esta síndrome é-se pseudo-hermafrodita. Aliás, veio a revelar-se que a atleta sul-africana Caster Semenya — que em 2009 pôs o mundo a discutir a questão das pessoas intersexuais, ao alcançar resultados fulgurantes — é pseudo-hermafrodita. Não tem ovários nem útero, mas atrás da vagina tinha testículos ocultos.

Mencionando outra situação, também há homens XX — ou seja, sem Y. A introdução do gene SRY noutro cromossoma, devido a um erro, origina um homem que é XX. Do ponto de vista dos cromossomas são mulheres, mas a nível genético, hormonal e dos genitais são homens.

A propósito do caso de Caster Semenya, em 2009, Jorge Sequeiros resumia assim os vários conceitos de sexos: “Há um sexo genético, o que quer dizer que há genes masculinizantes e feminizantes. Estes genes determinam o sexo gonádico — as gónadas, que vão evoluir no sentido de testículos ou ovários, e produzem hormonas masculinas e femininas, o que determina o sexo hormonal. E o sexo hormonal determina o desenvolvimento dos genitais internos e externos, que por sua vez vão determinar o sexo civil. Pode haver interferências, que fazem com que haja contradições entre os vários níveis de sexo.”

O resultado é uma pessoa intersexual. Tanto quanto Jorge Sequeiros se lembra, esta questão não foi discutida no Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, órgão consultivo do qual é membro.

 
“Irá fazer-se”
Em Portugal, uma possibilidade legal idêntica à da Alemanha não começou sequer a ser discutida, mas “é um caminho que tem de se fazer e irá fazer-se”, afirmou ao PÚBLICO José Soeiro, dirigente do BE que esteve ligado à elaboração e aprovação da lei da mudança de identidade de género. Sublinhando que a legislação alemã se dirige a intersexuais e no momento do nascimento, José Soeiro frisou que “é um reconhecimento legal de uma realidade que existe, mas que não tem ainda moldura legal, pelo que é sempre um acto positivo”. O dirigente do BE salientou ainda que esta legislação é importante, até porque abre a porta ao “repensar das práticas médicas actuais” e pode levar a “mudar a prática actual em que existe sobre este assunto um problemático poder discricionário dos médicos que intervêm e operam as crianças à nascença”.

Igualmente Miguel Vale de Almeida, que como deputado independente eleito pelo PS esteve na origem da lei da identidade de género, se congratula com a possibilidade de esta medida vir a ser adoptada num país europeu. Falando como antropólogo, Miguel Vale de Almeida, que é professor do ISCTE, destaca que “há duas coisas nesta lei que são óbvias”. A primeira é que “irá acabar com as operações feitas compulsivamente à nascença de definição de sexo masculino ou feminino que dão bronca mais tarde”. A segunda consequência é que “deixa em aberto a identidade de sexo, deixa aberto o neutro de sexo, que pode ser definido depois. Mas pode deixar também a identidade de género para quem a queira definir mais tarde”.

Desenvolvendo esta segunda questão, Vale de Almeida diz que a primeira variante “é simples porque tem lado médico”, a segunda, a de “deixar em aberto para a pessoa optar mais tarde sobre a sua identidade, é mais complexa porque coloca questões ideológicas sobre as concepções de género”. E conclui: “Andamos há demasiado tempo com o binarismo entre feminino e masculino, que é autolimitativo, é altura de começar a resolver isso.”

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