quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Nobel da química recompensa três pioneiros da “nanoscopia”

Texto de Ana Gerschenfeld publicado pelo jornal Público em 08/10/2014.
Desde 1873 que se presumia que os microscópios ópticos não vêem para além de pequenas bactérias. Os laureados contornaram essa limitação ao ponto de conseguir ver moléculas individuais nas células vivas.
 
O Prémio Nobel da Química foi atribuído a Eric Betzig, do Instituto Médico Howard Hughes (EUA), Stefan Hell, do Instituto Max Planck (Alemanha), e a William Moerner, da Universidade de Stanford (EUA), pelo “desenvolvimento da microscopia de super-resolução por fluorescência”, anunciou esta quarta-feira o comité do Nobel no Instituto Karolinska, em Estocolmo (Suécia).
 
Cada um dos laureados recebe um terço do prémio, de um montante global de oito milhões de coroas suecas (quase 900.000 euros).
 
Desde o século XVII que a microscopia óptica permite visualizar o diminuto mundo vivo que nos rodeia – bactérias, espermatozóides e outras células, marcando o início da microbiologia. E fá-lo sem causar grandes estragos nos objectos observados – ao contrário da microscopia electrónica, mais recente, que exige que as amostras a observar sejam submetidas a tratamentos que matam os tecidos vivos.
 
Porém, a microscopia óptica convencional também apresenta uma limitação física intrínseca, enunciada em 1873 pelo físico alemão Ernst Abbe: a sua resolução será sempre inferior a metade do comprimento de onda da luz utilizada. Por outras palavras, não é, em teoria, possível visualizar objectos de dimensões inferiores a 0,2 mícrons (milésimos de milímetro), cerca de 500 vezes mais finos do que um cabelo humano.
 
Essa barreira teórica aparentemente imutável persiste. Mas não impediu os três laureados do Nobel da Química deste ano de encontrarem maneiras de a contornar na prática. Como? Graças à capacidade (que valeu aliás aos seus descobridores o Prémio Nobel da Química em 2008) de “marcar” às moléculas biológicas acoplando-as a uma proteína, chamada GPF – e produzida por uma pequena medusa –, que em certas condições de iluminação fica verde fluorescente.
 
“Graças a moléculas fluorescentes, os laureados do Nobel da Química de 2014 contornaram astutamente esta limitação” da microscopia óptica, explicou em comunicado a Real Academia Sueca de Ciências. E as suas “descobertas fundamentais” permitiram transformar a microscopia em “nanoscopia” (o nanómetro – ou milionésimo de milímetro – é a escala das moléculas individuais).
 
Duas técnicas foram agora recompensadas. Uma delas, desenvolvida em 2000 por Hell (51 anos, cidadão alemão nascido na Roménia), é a chamada microscopia STED (Stimulated Emission Depletion Microscopy). Utiliza dois lasers: um para estimular a fluorescência das moléculas na amostra que se pretende observar e o outro para “cancelar” toda a fluorescência, excepto num volume de dimensões nanométricas, explica ainda o documento. Assim, ao varrer a amostra “nanómetro após nanómetro”, o microscópio ilumina-a “à maneira de uma nano-lanterna”. E a seguir, por justaposição das várias pequenas imagens, obtém-se uma imagem do objecto cuja resolução é muito maior do que o limite teórico de 0,2 mícrons.
 
A segunda técnica, desenvolvida separadamente por Betzig (54 anos) e Moerner (61 anos), ambos nascidos nos EUA, é a “microscopia de molécula única”, baseada desta vez na capacidade de ligar e desligar a fluorescência de moléculas individuais. Isso permite obter várias imagens da amostra fazendo brilhar apenas algumas moléculas de cada vez. E aqui, é a sobreposição dessas múltiplas imagens que fornece então uma “super-imagem” de resolução nanométrica. A técnica é muito recente: foi utilizada pela primeira vez por Betzig em 2006.
Graças a estes avanços, “a microscopia, que era uma técnica biológica, passou a ser uma técnica química”, disse Sven Lidin, presidente do comité do Nobel da Química, em entrevista desde Estocolmo (retransmitida em directo por webcast) a seguir ao anúncio dos premiados. “Estamos a falar de química ao nível de uma única molécula e em condições reais.”
 
Tornou-se assim possível, em particular, ver como se formam as ligações nervosas no cérebro, seguir o rasto às proteínas envolvidas em doenças como a Parkinson ou a Alzheimer – e ainda, acompanhar o percurso de tal ou tal molécula num embrião em desenvolvimento, salienta o comunicado do comité do Nobel.
 
Segundo a agência Reuters, Betzig declarou-se “em estado de choque” quando soube a notícia – e Moerner, que estava a assistir a uma conferência no Recife (Brasil), disse que uma coisa dessas “faz bater o coração a toda a velocidade.”
 
Quanto a Hell, a agência AFP relata que, quando na quarta-feira o cientista recebeu o telefonema de Staffan Normark, do comité do Nobel, a dar-lhe os parabéns, pensou que se tratava de uma brincadeira. “Foi uma surpresa total, não conseguia acreditar”, disse Hell. Mesmo assim, acabou de ler o parágrafo de um artigo que tinha deixado a meio devido ao telefonema e só depois é que foi anunciar a boa nova à mulher e a algumas pessoas chegadas.

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