terça-feira, 7 de outubro de 2014

Nobel da Medicina recompensa três neurocientistas pela descoberta do “GPS” do cérebro

Texto de Ana Gerschenfeld publicado pelo jornal Público em 06/10/2014
Por que não nos perdemos quando vamos trabalhar, ao supermercado ou à escola buscar os miúdos? Porque temos um GPS no nosso cérebro. Os laureados do Nobel da Medicina deste ano descobriram-no.
 
O prémio Nobel da Medicina de 2014 foi atribuído esta segunda-feira a John O'Keefe, do University College de Londres (UCL, Reino Unido) e ao casal May-Britt e Edvard Moser, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia de Trondheim, pela sua descoberta “de células que constituem um sistema de posicionamento no cérebro”, anunciou o comité do Nobel no Instituto Karolinska, em Estocolmo (Suécia)
 
Mais precisamente, este “GPS interno” cerebral “permite orientarmo-nos no espaço e demonstra a existência de uma base celular para uma função cognitiva de alto nível”, diz ainda o comité Nobel em comunicado.
 
O'Keefe, que recebe metade do prémio de oito milhões de coroas suecas (cerca de 881.000 euros), tem 74 anos. Nasceu nos EUA, doutorou-se no Canadá em finais da década de 1960 e a seguir foi trabalhar – e ainda trabalha – no UCL (é cidadão norte-americano e britânico).
 
Em 1971, lê-se no mesmo comunicado, descobriu que, no cérebro do rato, numa estrutura chamada hipocampo, certas células se activavam quando o animal se encontrava numa dada posição de uma sala e outras quando se encontrava noutras posições. O hipocampo desempenha um papel particularmente importante na consolidação da memória e nas capacidades de navegação no espaço circundante.
 
O cientista especulou então que essas células formavam um mapa cerebral interno do mundo exterior e baptizou-as “células de posicionamento” (place cells). Tinha de facto assim descoberto o primeiro componente de um GPS cerebral interno que, segundo se viria a saber muito mais recentemente, também existe nos seres humanos.
 
Entretanto, em meados dos anos 1990, relata a revista Nature, dois jovens neurocientistas noruegueses (nascidos no início dos anos 1960) chegaram ao laboratório de O’Keefe para fazerem um pós-doutoramento: May-Britt e Edvard Moser, os outros dois laureados deste ano.
 
Depressa os Moser ficaram entusiasmados com a questão das células de posicionamento, mas poucos meses depois tiveram de regressar à Noruega, o seu país de origem, de onde receberam ofertas de emprego para trabalhar em Trondheim que lhes pareciam difíceis de recusar.
 
Já no seu novo laboratório, os Moser começaram a analisar as ligações nervosas entre as células de posicionamento descobertas por O’Keefe e outras células nervosas. E foi assim que, também em experiências com ratos, encontraram, numa estrutura cerebral próxima do hipocampo chamada córtex entorinal, certas células que se activavam quando um rato passava numa dada posição do espaço onde se encontrava.
 
Para tentar perceber o que se passava, deixaram os animais circular livremente dentro de caixas enquanto registavam, através de electrodos implantados no seu cérebro, os locais onde se activava cada uma das células do córtex entorinal que estavam a monitorizar. Foi assim que, em 2005, mais de 30 anos depois da descoberta inicial de O’Keefe, a dupla norueguesa anunciou, num artigo na Nature, que esses locais de activação formavam uma grelha hexagonal, à maneira de um favo de mel. As células do córtex entorinal, que os Moser designaram de “células em grelha” (grid cells), constituíam assim um sistema abstracto de coordenadas espaciais. Tinham descoberto um segundo elemento-chave do sistema cerebral integrado de ajuda à navegação.
 
Os dois sistemas interagem: quando por cima desta “grelha” celular abstracta formada no córtex entorinal se vem sobrepor o padrão de actividade das células de posicionamento do hipocampo, isso permite ao animal saber onde estão os marcos de referência relevantes à sua volta – “tais como uma roda de exercício ou a porta” da gaiola, lê-se ainda na Nature –, navegar entre eles e integrá-los na sua memória para futura utilização.
 
“Juntamente com outras células do córtex entorinal que reconhecem a direcção da cabeça e os limites da sala, as células [em grelha] estabelecem circuitos com as células de posicionamento do hipocampo”, explica ainda o comunicado Nobel. “Estes circuitos constituem um sistema de posicionamento global, um GPS interno, dentro do cérebro.”
 
Com já foi referido, tudo indica hoje, com base em técnicas não invasivas de visualização do cérebro humano e em estudos de doentes submetidos a neurocirurgias, que os mesmos elementos do GPS cerebral existem no hipocampo e no córtex entorinal dos seres humanos. E nos doentes com Alzheimer, que frequentemente perdem o sentido da orientação e deixam de reconhecer mesmo os sítios mais familiares, sabe-se que os neurónios de precisamente aquelas duas estruturas cerebrais estão entre os primeiros a ser afectados.
 
“A compreensão deste sistema de posicionamento global do cérebro poderá portanto ajudar a perceber o mecanismo subjacente à devastadora perda de memória espacial que afecta as pessoas que padecem a doença de Alzheimer”, salienta o comunicado Nobel.
 
“Ainda estou em choque. Isto é tão fantástico”, disse May-Britt Moser quando recebeu, pelo telefone, a notícia oficial na segunda-feira de manhã. O seu marido Edvard só viria a sabê-lo umas horas mais tarde, ao desembarcar de um avião em Munique.
 
O’Keefe, citado pela agência Reuters, ficou muito surpreendido de receber o Nobel, em particular depois de aquilo que descreveu como uma “juventude multifacetada”, durante a qual passou dos estudos clássicos para a aeronáutica antes de enveredar pela filosofia e a psicologia.
 

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