Há dias vieram-me à memoria algumas das palavras do cântico negro, o belíssimo e enigmático poema de José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira, ilustre professor do Liceu de Portalegre, que falecido em 1969, não conseguiu vislumbrar a madrugada que também ele esperava "o dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio e livres habitamos a substância do tempo"como dizia Sofia de Mello Breyner, a propósito da reconquista da liberdade.
Atrevo-me a dizer que não há homem ou mulher da minha geração que não tenha lido, ouvido ou declamado esta pérola que brota do mais profundo do ser de um homem inquieto e inteiro, que não se limitou a ser mais um no cinzentismo de um país pouco habituado à verticalidade e ao respeito pela singularidade de cada um.
Atrevo-me a dizer que não há homem ou mulher da minha geração que não tenha lido, ouvido ou declamado esta pérola que brota do mais profundo do ser de um homem inquieto e inteiro, que não se limitou a ser mais um no cinzentismo de um país pouco habituado à verticalidade e ao respeito pela singularidade de cada um.
Num blogue que se diz dedicar às coisas da ciência, não é descabido relembrar que o caminho de muitos cientistas, tal como o deste homem de Letras, é, por vezes, um caminho inglório e solitário, em contracorrente com lobbies estabelecidos, tornando-se necessário gritar bem alto que não vale a pena aliciá-los com um melífluo "Vem por aqui".
No sentido de alertar os nossos alunos para a importância dos valores e de lhes relembrar que um cientista tem que ser um cidadão de corpo inteiro, convido-os a "saborear" este poema "inteiro e livre" que nos permite "habitar a substância do tempo".
Cântico negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
José Régio
José Régio