segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Borracha escolar resolveu mistério dos pergaminhos medievais


O velino ultrafino das bíblias medievais terá sido feito com a pele de animais abortados? A resposta foi agora obtida utilizando uma técnica muito simples e não invasiva.

Extracção de proteínas de um pergaminho utilizando um pedaço de borracha
Sarah Fiddyment mostra o pergaminho de um acto jurídico
Página de uma bíblia do século XIII
Uma simples borracha em PVC permitiu a uma equipa internacional de biólogos, arqueólogos, medievalistas e outros especialistas concluir que o finíssimo pergaminho de que foram feitas, na Idade Média, as páginas das primeiras “bíblias de bolso”, afinal não provém, como especulavam alguns, da pele de fetos de animais. Os resultados foram publicados na última edição da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

Milhares de bíblias de bolso foram fabricados, a partir do século XIII, sobretudo em França, mas também em Inglaterra, Itália e Espanha, lê-se num comunicado a Universidade de Iorque (Reino Unido), onde o estudo foi realizado. Alexander Devine, co-autor do estudo, e estudioso de manuscritos antigos, explica no mesmo documento que a importância e a influência das bíblias produzidas em grande escala ao longo do século XIII foram “o resultado directo do seu formato em volume único e portável, tornado possível pela combinação inovadora de estratégias de miniaturização e de compressão conseguidas através do uso de pergaminho extremamente fino”.

Como salientava, por outro lado e com alguma ironia, um outro co-autor do estudo – Bruce Holsinger, medievalista da Universidade da Virgínia (EUA) – num artigo da sua autoria publicado na mesma semana na revista The New York Review of Books, o facto é que “uma grande parte da nossa herança escrita sobrevive sob a forma de uma grande massa de restos mortais de animais”.

E este especialista fazia notar ainda que, no Reino Unido, continua a ser é obrigatório “imprimir e conservar as cópias oficiais das leis aprovadas pelo Parlamento em pele de animal, o que inspira ocasionalmente debates em Westminster acerca da ética e da economia do comércio de pergaminho” – tradição essa que poderá vir a acabar em breve, “para a grande consternação da comunidade dos conservadores [de arquivos] e dos especialistas de livros de arte”.

Velino uterino?
Seja como for, a utilização da palavra em latim abortivum em muitas fontes documentais para se referir ao pergaminho ultrafino desses volumes antigos levou alguns especialistas a sugerir que se tratava de “velino uterino” – isto é, que a pele de fetos de bovino, ovino e de outros animais de criação fora usada para o fabricar.

Pelo seu lado, os críticos desta teoria retorquiam que não teria sido sustentável criar animais apenas para abortar fetos com vista a produzir as grandes quantidades de velino necessárias para as edições em grande escala daquela altura. Ainda outra teoria estipulava que, para fabricar o pergaminho, também teriam sido utilizados animais selvagens como coelhos ou esquilos. Por último, havia quem propusesse que era possível obter o velino a partir da pele de animais mais velhos através de uma técnica específica de produção, hoje esquecida. E parece ser esta a teoria que agora se confirma a partir do estudo.

O trabalho foi realizado por cientistas do Reino Unido, França, Bélgica, Dinamarca, Irlanda e Estados Unidos, liderados por Sarah Fiddyment e Matthew Collins, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Iorque. Os cientistas aplicaram pela primeira vez uma técnica não invasiva, dita de “extracção triboeléctrica de proteínas”, para resolver esta controvérsia de longa data. O método não podia ser mais simples e imediato: consiste em esfregar suavemente o pergaminho com uma borracha de PVC.

Na área da conservação, explicam os autores na PNAS, é corrente utilizar-se borrachas de PVC, semelhantes às borrachas da escola, para limpar os documentos antigos. Ora, como fazem ainda notar, o método apresenta uma vantagem adicional: proteínas provenientes do material antigo ficam agarradas à borracha ao mesmo tempo que a sujidade – e podem portanto ser analisadas para determinar a sua origem. Já agora, é graças à electricidade electroestática criada pela fricção (o chamado efeito triboeléctrico) que a borracha consegue “apagar” a sujidade e extrair as proteínas.

Os cientistas recolheram desta forma proteínas animais no velino de 72 bíblias de bolso medievais originárias de França, Inglaterra e Itália – e ainda, de 293 amostras de pergaminho do século XIII, lê-se no comunicado. A espessura dos pergaminhos variava de 0,03 a 0,28 milímetros.

Quando a seguir submeteram o material recolhido à clássica técnica de espectroscopia de massa, os cientistas conseguiram determinar, em particular, quais as espécies animais que tinham sido utilizadas para fabricar o velino. Uma primeira conclusão: “Não encontrámos qualquer vestígio de animais imprevistos”, diz Sarah Fiddyment, citada no mesmo documento. “Porém, conseguimos identificar mais do que uma espécie de mamífero num mesmo documento, e isso bate certo com a disponibilidade das peles conforme o local de fabrico.”

Quanto ao facto de poder tratar-se de pele de animais abortados, nada indica que esse seja o caso: “Os nossos resultados sugerem que o velino ultrafino não provém necessariamente do uso de animais abortados ou recém-nascidos com uma pele ultrafina, mas podem [pelo contrário] reflectir a utilização de um processo de produção que permitia transformar em velino de igual qualidade e finura a pele de mamíferos em maturação de diversas espécies”, acrescenta a investigadora.

A prova disso é o facto que, depois de concluído este trabalho, o co-autor e especialista em conservação de pergaminhos Jirí Vnoucek conseguiu recriar pergaminhos semelhantes ao “velino uterino" a partir de peles antigas. “É mais uma questão de utilizar a tecnologia certa de fabrico do que de recorrer à pele de animais uterinos”, explica. “Claro que as peles de animais mais novos são as melhores para produzir pergaminho fino, mas posso imaginar que toda a pele era utilizada e que nada era deitado fora.”

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