quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Brasil liberta milhares de mosquitos mutantes para evitar propagação da dengue

Artigo de Alexandre Costa publicado pelo jornal Expresso em 25/09/2014.
Todas as semanas, e durante quatro meses, vão ser libertados dez mil mosquitos Aedes aegypti contaminados com uma bactéria que impede a transmissão da doença. Brasil é o país com mais casos. Experiência começou no Rio de Janeiro.
 
Cientistas brasileiros da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) lançaram quarta-feira os primeiros mosquitos Aedes aegypti contaminados com Wolbachia (bactéria que impede a transmissão da febre de dengue), numa experiência que esperam que venha a travar a transmissão da doença aos humanos.
 
A bactéria Wolbachia, que se encontra em 60% dos insetos, atua como uma vacina nos Aedes aegypti, impedindo que o vírus da dengue se multiplique nos seus corpos.
 
A bactéria mantém-se depois nas futuras gerações dos mosquitos. Quando um macho portador da bactéria fertiliza os óvulos de uma fêmea não portadora, os óvulos não se transformarão em larvas. Quando ambos já são portadores, a bactéria é transmitida às futuras gerações.
 
Os primeiros destes mosquitos foram libertados na comunidade de Tubicanga, na Ilha do Governador, na zona norte da área metropolitana do Rio de Janeiro, escolhida para o arranque da experiência, dadas as condições favoráveis à proliferação dos Aedes aegypti.
 
Cerca de 10 mil mosquitos serão lançados semanalmente ao longo dos próximos quatro meses em alguns locais da região metropolitana, esperando-se que após esse período a totalidade da população destes insetos se mantenha contaminada com a bactéria Wolbachia.
 
As experiências com este tipo de abordagem para o combate à dengue começaram a ser desenvolvidas na Austrália em 2009, tendo entretanto também já sido levadas a cabo na Indonésia e Vietname.
 
O Brasil é o país com mais casos de dengue, com 3,2 milhões de pessoas infetadas e 800 mortes ocorridas entre 2009 e 2014.
 
A doença esteve quase ausente no Brasil durante mais de duas décadas, até ter reaparecido em 1981. Desde então foram registados 7 milhões de casos.
 
Entre janeiro e agosto deste ano houve 511 mil pessoas infetadas no país. Na região do Rio de Janeiro foram registados mais de dois mil.
 
Espera-se que após a avaliação da eficácia destas primeiras experiências que começaram a ser levadas a cabo na região, esta estratégia de combate à dengue seja alargada a outros pontos do Brasil, mas ainda não há uma data definida nesse sentido.


 

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Novas evidências reforçam que Lua teve origem na colisão da Terra

Artigo publicado por Diário Digital em 06/06/2014.
Cientistas alemães anunciaram que as amostras lunares recolhidas nas décadas de 1960 e 1970 mostram novas evidências de que a Lua formou-se quando a jovem Terra colidiu com outro corpo celeste.
 

 
Os investigadores chamam de «A Hipótese do enorme Impacto» o suposto ocorrido, segundo o qual a Lua foi criada quando a Terra bateu com um corpo chamado Theia há 4,5 mil milhões de anos.
 
A maioria dos especialistas apoia esta hipótese, mas eles dizem que a única forma de confirmar que tal impacto ocorreu é estudando as proporções de isótopos de oxigénio, titânio, silício e outros componentes nos dois corpos celestes.
 
Até agora, os cientistas que estudavam as amostras lunares que chegaram da Terra em meteoritos descobriram que a Terra e a Lua têm uma composição muito similar.
 
Mas agora, ao estudar as amostras recolhidas da superfície lunar pela equipa da Nasa das missões Apolo 11, 12 e 16 e compará-las com técnicas científicas mais avançadas, os cientistas descobriram algo novo.
 
«Puderam detectar uma leve, mas claramente maior, composição do isótopo de oxigénio nas amostras lunares», destaca o estudo publicado na revista especializada Science. «Esta mínima diferença apoia a hipótese do enorme impacto na formação da Lua.»
 
Segundo modelos que recriaram esta colisão num nível teórico, a Lua era formada por elementos de Theia em 70% a 90%, e elementos terrestres em 10% a 30%.
 
Mas agora os investigadores reveram para cima o papel do nosso planeta na composição do seu satélite: a Lua pode ser uma mistura 50/50 de restos da Terra e de Theia. No entanto, faltam mais estudos para confirmar esta versão.
 
«Agora podemos estar razoavelmente seguros de que a enorme colisão ocorreu», disse o autor principal do estudo, Daniel Herwartz, da Universidade Georg-August de Gottingen, na Alemanha.

Estudos sugerem que nascimento da Lua foi violento

Artigo publicado por Diário Digital e 23/09/2014.

Enquanto a Lua dá a volta à Terra, a cada 28 dias, e mostra progressivamente mais e depois menos da sua face, a distância entre a Lua e a Terra também muda.

 
No perigeu, o ponto da sua órbita em que está mais próxima da Terra, a Lua pode estar 42 mil quilómetros mais perto de nós do que no ponto mais distante.
 
E se esta chega ao perigeu ao mesmo tempo em que está na diagonal em relação ao Sol, temos a chamada superlua, uma lua cheia que pode parecer que está tão perto que a poderíamos abraçar – até 12% maior e 30% mais iluminada do que a lua cheia média.
 
A atenção dada à superlua pelos astrónomos é excessiva. Observam que o termo «superlua» nasceu com a astrologia, não a astronomia; que as luas cheias de perigeu não são tão raras assim, tanto que acontecem em média a cada 13 meses, e que o seu tamanho maior muitas vezes deve-se tanto a uma ilusão óptica ou outra quanto à relativa proximidade lunar.
 
Mesmo assim, concorda, que, seja pela razão que for, devemos sim olhar para a nossa Lua com frequência e cedo apreciar as muitas características que a diferenciam das mais de 100 outras luas do sistema solar. E que deveríamos até observar o nosso satélite como um planeta.
 
«Eu sei que isso contraria a nomenclatura actual», afirmou David A. Paige, professor de ciência planetária na Universidade da Califórnia em Los Angeles, aludindo à definição de um planeta como sendo o objecto gravitacional dominante na sua órbita. «Mas, de onde eu venho, qualquer coisa que seja grande o suficiente para ser redonda é um planeta.»
 
Contrariamente à maioria das luas, a nossa tem a capacidade e força de coalescer numa esfera. Cientistas dizem que, embora o público possa não pensar na Lua com frequência, os estudos lunares estão a render muitas conclusões e surpresas interessantes.
 
Um grupo de investigadores relatou evidências novas de que a Lua terá tido uma origem violenta quando a Terra colidiu com um planeta que não sobreviveu. Outra equipa propôs que as origens cataclísmicas da Lua podem explicar os seus traços misteriosos que conhecemos como o «homem da Lua» ou o «rosto da Lua».

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Espinhas de bacalhau estão a ser usadas para criar um protector solar

Texto de Marta Lourenço publicado pelo jornal Público em 15/07/2014.

As espinhas do peixe que os portugueses tanto gostam podem ser muito mais do que os restos que ficam no prato. No Porto, uma equipa de cientistas procura dar-lhes uma roupagem completamente nova.
 

 
O pó de hidroxiapatite, que é um fosfato de cálcio, o principal composto dos ossos

Das espinhas do bacalhau obtém-se hidroxiapatite

 


O creme protector solar com diferentes percentagens de pó de hidroxiapatite
 
Nos dias de grande calor, não nos contentamos com uma bebida fresca ou um belo gelado. De chinelo no pé, quer vamos até à praia ou à piscina, todos gostamos de estender a toalha e apanhar banhos de sol e o protector solar não pode ficar em casa. E se lhe disserem agora que as espinhas de bacalhau o podem proteger dos raios ultravioletas? Ora é isso que está a fazer uma equipa de investigadores da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto.
 
Por ano, produzem-se milhares de toneladas de espinhas, que costumam ser aproveitadas no fabrico de rações e farinha de peixe. A ideia de valorizar ainda mais as espinhas de bacalhau remonta a 2010, quando a equipa coordenada por Manuela Pintado, da Escola Superior de Biotecnologia do Porto, começou a tentar obter um composto de cálcio a partir de espinhas de bacalhau. Esse composto é a hidroxiapatite e poderia servir, por exemplo, para fabricar próteses ósseas e dentárias.
 
Agora, utilizando esse mesmo composto, surgiu uma possível nova aplicação: obter um produto que tivesse a capacidade de proteger dos raios ultravioleta (UV).
 
Antes de mais, uma breve explicação sobre a radiação ultravioleta. Está dividida em três regiões, consoante o seu comprimento de onda: os raios UVC (200-290 nanómetros), os UVB (290-320 nanómetros) e os UVA (320-400 nanómetros). Enquanto a radiação UVC é essencialmente bloqueada pela camada de ozono, na atmosfera superior, isso não acontece com os raios UVB e UVA. Por isso, estes dois tipos de raios ultravioletas podem ser perigosos para a saúde humana, causando grandes danos na pele, como eritemas e queimaduras solares, e cancros de pele a longo prazo.
 
Os protectores solares são uma das maneiras mais fáceis e eficazes de evitar os problemas na saúde provocados pelas radiações UVA e UVB. Idealmente, devem proteger a pele tanto dos UVA como UVB. E os UVC, tendo em conta que a camada de ozono não tem estado na sua melhor forma? “Este não é um parâmetro muito importante, porque estes raios são bloqueados pela camada de ozono na alta atmosfera. Quase não chegam aqui à superfície da Terra, por isso não é preciso os protectores solares terem efeito com raios UVC”, responde ao PÚBLICO Clara Piccirillo, cientista de materiais na Escola Superior de Biotecnologia do Porto e que está a trabalhar no desenvolvimento destes novos protectores solares.
 
O que foi feito então para que as espinhas de bacalhau tivessem capacidade de absorção da radiação ultravioleta? “Basicamente, modificámos a composição das espinhas, que foram deixadas numa solução de ferro. Com esse tratamento, o ferro entrou na estrutura das espinhas”, explica Clara Piccirillo. E é o ferro que lhes confere as propriedades de absorção dos raios ultravioletas.
 
“Depois, as espinhas foram aquecidas a temperaturas elevadas: a 700 graus Celsius. Desta maneira, foram eliminadas todas as partes orgânicas presentes nas espinhas e o que ficou foi a parte mineral”, continua Clara Piccirillo.
 
Restou então o principal material constituinte das espinhas em forma de pó: a hidroxiapatite, que é um fosfato de cálcio. Este pó castanho-avermelhado é, aliás, o principal componente dos ossos humanos e dos animais.
 
“A hidroxiapatite sozinha não é um produto que pode ser usado como filtro solar, porque não absorve a luz ultravioleta. Mas, introduzindo o ferro, há uma modificação na estrutura. Portanto, o material torna-se um protector solar”, explica a investigadora italiana, há cinco anos em Portugal. “Esse pó é o material-base e pode ser usado de muitas maneiras.”
 
Uma das maneiras é precisamente desenvolver um creme que funcione como protector solar. Numa primeira fase, este pó de hidroxiapatite foi testado sozinho, em laboratório, e os resultados foram positivos, segundo a investigadora. Posteriormente, o pó foi incorporado num creme e também submetido a testes em laboratório. Consoante a percentagem de pó introduzida, o creme adquiriu um tom mais ou menos castanho-avermelhado.
 
Mais tarde, o creme com 15% de pó foi testado em 20 pessoas sem problemas de saúde e de pele. Esses resultados foram publicados pela equipa na revista Journal of Materials Chemistry B, no início de Julho. “Este material mostrou boa absorção a toda a gama de UV”, diz o artigo científico, acrescentando-se que “cremes criados com este material podem ser usados como um protector solar de largo espectro”. “O creme também é fotoestável e não causa irritação ou eritemas em contacto com a pele humana”, lê-se ainda.
 
“Estes resultados mostram como o subproduto de um alimento como as espinhas de peixe pode ser convertido em produto valioso, com potencial para tratamentos na área da saúde e na cosmética. Esta é a primeira vez que um protector solar à base de hidroxiapatite é desenvolvido e a prova do seu conceito é validada”, conclui o artigo.
 
Clara Piccirillo conta que o creme foi testado em voluntários para averiguar se produzia reacções negativas na pele. “O que fizemos foi colocar um pouco de creme em contacto com a pele durante 48 horas e verificar, ao fim deste período, a presença de irritações. Isto foi feito com creme ‘normal’, ou seja, sem pó, e com creme com pó. Em nenhum voluntário houve reacções negativas. Deste ponto de vista, é um produto que tem potencial e pode ser usado sem causar problemas na saúde”, sublinha a investigadora.
 
“É a primeira vez que estamos a tentar desenvolver protectores solares com um material diferente que não seja bióxido de titânio ou óxido de zinco”, diz ainda Clara Piccirillo, referindo-se aos produtos já existentes no mercado. “Claramente, a vantagem deste material [hidroxiapatite] é ser menos tóxico. Já temos todos os seus componentes no nosso organismo, que são fosfato de cálcio e ferro.”
 
Na opinião da cientista, este produto natural pode vir a atrair um grande número de interessados. Apesar de os protectores solares no mercado terem qualidade, o novo produto é apresentado como vantajoso por não ter bióxido de titânio e óxido de zinco, que, em quantidades muito elevadas, podem ser tóxicos.
 
Um protector solar que bloqueie tanto os raios UVA como UVB pode ser classificado como sendo de espectro amplo, como é o caso do protector à base de espinhas de bacalhau: “Pode ser classificado como protector 5 estrelas, o que corresponde à protecção máxima numa das escalas internacionais. Esta é uma das características mais importantes para um protector solar”, explica a cientista.
 
No início, as próteses
Para já, o novo protector está patenteado a nível nacional. A equipa espera agora continuar os seus trabalhos, procurando melhorar tanto as propriedades da hidroxiapatite como a formulação do próprio creme.
 
Ainda com a função de protector solar, o pó de hidroxiapatite irá ser testado noutros produtos. “Por exemplo, no futuro queremos incluir este pó num tecido e esse tecido pode ser usado para protecção solar”, avança Clara Piccirillo.
 
Por enquanto, a comercialização deste protector ainda não é uma preocupação para os cientistas. “Ainda é demasiado cedo para isso.”
 
Mas o pó de hidroxiapatite já estava a ser investigado para aplicações médicas: em próteses ósseas e dentárias, cujos resultados foram divulgados em 2012. Já nessa altura, tal como agora, as investigações tiveram a parceria da empresa Pascoal & Filhos, que pesca e transforma principalmente bacalhau, para poder aproveitar-se como matéria-prima um subproduto abundante em Portugal. Precisamente porque os portugueses são grandes consumidores de bacalhau, os cientistas estão a usar as espinhas deste peixe e não de outros.
 
Deste 2012, os investigadores prosseguiram os estudos em laboratório sobre as próteses e agora a equipa está em contacto com empresas para que sejam fabricadas. “Estamos em conversação com empresas de próteses para avaliar o potencial da nossa hidroxiapatite em aplicações. Isso terá sempre de ser feito com a indústria das próteses ósseas”, conta Manuela Pintado.
 
“Durante este período, também estivemos a fazer vários estudos com o objectivo de validar as propriedades de biocompatibilidade em vários tecidos [humanos], de maneira a prever se são seguros e ver se a hidroxiapatite é compatível com as nossas células e se realmente evidencia a capacidade regenerativa”, explica ainda Manuela Pintado.
 
Feitos em culturas de células, esses estudos mostraram que a hidroxiapatite pode ser aplicável a próteses ósseas e dentárias e, além disso, é segura.
 
Agora, já sabe que as espinhas do bacalhau que come podem ser mais do que um desperdício e estar mesmo na base de inovações científicas. Da próxima vez que for à praia, pode lembrar-se que há cientistas que procuram desenvolver protectores solares à base de espinhas.
Texto editado por Teresa Firmino

Os bebés treinam mentalmente a fala meses antes de começarem a falar

Texto de Ana Gerschenfeld pubicado pelo jornal Público em 16/07/2014.

Ao longo do primeiro ano de vida, o cérebro humano prepara-se para conseguir coordenar os movimentos que irão permitir ao bebé articular os sons da sua língua, concluem cientistas.
 

Um bebé de um ano sentado no aparelho de medição da actividade cerebral
Sabe-se que, até mais ou menos aos oito meses de idade, os bebés prestam igualmente atenção aos sons de todas as línguas que ouvem. Mas, por volta dos 12 meses, passam a reconhecer claramente a sua língua materna – ou seja, aquela que é, normalmente, a mais falada à sua volta – em detrimento de qualquer outra. Ainda não se sabe bem como é que esta transição da percepção da fala se opera, mas agora uma equipa de cientistas nos Estados Unidos descobriu o que consideram ser uma base biológica dessa radical transformação.
 
Segundo eles, mesmo quando os bebés ainda são incapazes de articular qualquer palavra, o seu cérebro já está a tentar imitar, mentalmente, os sons que eles ouvem. E assim fazendo, está a construir, em silêncio, as bases neuronais motoras que irão possibilitar a locução pelo bebé, a partir do segundo ano de vida, das palavras da sua língua mãe. Os resultados foram publicados na edição desta semana da revista Proceedings of the National Academy of Sciences.
 
O que Patricia Kuhl, da Universidade de Washington (em Seattle), e colegas essencialmente mostraram é que as palavras que os bebés com sete meses de idade ouvem à sua volta estimulam as áreas motoras do cérebro que estão encarregadas de coordenar e planificar os movimentos que irão permitir, uns meses depois, a articulação efectiva da fala.
 
Os cientistas analisaram a actividade cerebral de 57 bebés, respectivamente com sete meses e 11 a 12 meses de idade. Para isso, sentaram-nos debaixo de um aparelho parecido “com um secador de cabelo à moda antiga” – mas que é de facto um capacete high-tech que mede a actividade cerebral através de uma técnica não invasiva dita de magnetoencefalografia, totalmente inócua para os bebés, lê-se no mesmo documento. Os bebés ouviam sílabas derivadas do inglês ou do espanhol, como “da” e “ta”, enquanto os cientistas registavam a resposta do cérebro dos bebés a esses sons.
 
Mais precisamente, a equipa registou uma activação neuronal numa área auditiva do córtex chamada "giro temporal superior" bem como em duas outras áreas – a área de Broca e o cerebelo – que se sabe serem responsáveis pela planificação dos movimentos necessários para articular as palavras. E constataram que, aos sete meses, todas essas áreas se activavam com igual intensidade fosse qual fosse a língua que os bebés ouviam.
 
“A maioria dos bebés de sete meses consegue palrar, mas apenas irá pronunciar as primeiras palavras a seguir ao primeiro aniversário”, diz Kuhl, citada em comunicado da sua universidade. “O facto de termos detectado uma activação cerebral em áreas cerebrais motoras numa altura em que os bebés estão simplesmente a ouvir os outros a falar é significativo, porque quer dizer que o cérebro do bebé tenta, logo de início, responder verbalmente. E também sugere que o cérebro dos bebés de sete meses já está a tentar descobrir os movimentos certos para produzir palavras.”
 
Já nos bebés com 11-12 meses, esse padrão de activação alterava-se: as áreas auditivas passavam a responder mais fortemente à língua materna do que à língua estrangeira, enquanto as áreas motoras passavam a responder mais fortemente à língua estrangeira do que à língua materna. Para os cientistas, isso não só confirma que, nesta fase do seu desenvolvimento, os bebés já adquiriram uma experiência auditiva suficiente para distinguirem a língua materna das outras, como também sugere que já é preciso um maior esforço por parte das suas áreas cerebrais motoras para descobrirem como articular os sons da língua estrangeira do que para articular as palavras da sua própria língua. A transição da percepção da fala apanhada ao vivo e em directo, por assim dizer.
 
“A experiência da língua [ouvida durante os primeiros meses de vida] serviria assim para reforçar o conhecimento da língua nativa, tanto perceptual como motor. Ao fim do primeiro ano, (…) tornar-se-ia portanto mais difícil e menos eficiente gerar modelos [motores] internos para uma língua estrangeira”, escrevem os cientistas.
 
Os resultados têm várias implicações sociais, segundo os autores. Por um lado, mostram que é preciso falar “a sério” com os bebés, mesmo sabendo que não percebem o que estamos a dizer-lhes, porque esse é precisamente o “catalisador” da sua aprendizagem da língua, a chave que lhes vai permitir gerar os tais “modelos cerebrais internos” para mais tarde conseguirem falar essa língua.
 
Por outro, sugerem que a forma como os pais costumam falar com os seus filhos recém-nascidos, articulando muito bem e esticando as vogais de forma exagerada (“oooohhh, meu liiiindoooo bebéééééé”) – e que nada tem a ver com dizer palavras que não fazem sentido – poderá ajudar os bebés na construção desses modelos motores cerebrais logo nos primeiros meses de vida. “Essa forma de falar dos pais é muito exagerada e é possível que, quando os bebés a ouvem, o seu cérebro consiga modelar mais facilmente os movimentos necessários à fala”, diz Kuhl.

Vírus da sida ressurgiu no organismo do “bebé do Mississippi”

Texto de Ana Gerschenfeld publicado pelo jornal Público em 16/07/2014.

Um bebé norte-americano que nascera já infectado pelo VIH, que fora tratado com altas doses de antirretrovirais logo à nascença – e que desde então era considerado “curado” – tornou a apresentar sinais de infecção activa pelo vírus da sida.
Um dos bebés tratados com antirretrovirais voltou a apresentar sinais do VIH
Os médicos que trataram uma menina contra o VIH apenas horas após ter nascido anunciaram há dias que, ao contrário do que acreditavam até agora, a menina já não se encontra em remissão.
 
A menina, que não recebia tratamento há cerca de dois anos, aparentava ainda recentemente ter ficado livre da infecção.
 
O resultado é “obviamente uma desilusão”, declarou aos jornalistas Anthony Fauci, director do Instituto Nacional das Alergias e das Doenças Infecciosas norte-americano, citado pela BBCNews.
 
Os médicos, liderados por Deborah Persaud, da Universidade Johns Hopkins (EUA), tinham tratado o bebé, que nascera no Mississippi já infectado pelo vírus, com altas doses de um cocktail de medicamentos antirretrovirais, habitualmente utilizado nos adultos infectados. Mas a dada altura, tinham perdido contacto com a mãe do bebé – e o tratamento fora interrompido. Quando o contacto foi retomado, os médicos constataram que os testes habituais não revelavam qualquer presença do VIH no organismo da criança, o que suscitou esperanças de que o tratamento antirretroviral fosse particularmente eficaz quando administrado muito precocemente aos bebés.
 
Aliás, um estudo financiado com dinheiros públicos estava previsto nos EUA para testar este método de tratamento e determinar se ele poderia ser aplicado a todos os recém-nascidos infectados pelo VIH. Mas agora, acrescentou Fauci, “vamos ter de olhar muito bem para esse estudo para ver se é preciso alterá-lo”.
 
Este desfecho vai ao encontro de outros resultados recentes, que também apontam para o facto de os reservatórios de VIH – os locais do organismo onde o vírus se esconde e fica em estado latente – serem muito maiores e portanto mais difíceis de erradicar do que se pensava.
 
Entretanto, um segundo bebé igualmente tratado, mas desta vez na Califórnia, ainda permanece livre do vírus. Porém, esta criança continua a tomar antirretrovirais, ao contrário da primeira – não sendo agora nada provável que os médicos arrisquem interromper o tratamento.
 
Até aqui, apenas um doente no mundo parece ter conseguido expulsar totalmente o vírus VIH – e isso após um transplante de medula óssea. Mas o caso deste homem, conhecido como o “doente de Berlim”, é diferente do dos bebés na medida em que o transplante que recebeu provinha de um dador que apresentava uma mutação, num gene chamado CCR5, que torna as células sanguíneas imunes ao vírus da sida.

O que o nosso cérebro faz quando queremos virar para um lado ou para o outro

Texto de Ana Gerschenfeld publicado pelo jornal Público em 08/07/2014.

Quando viramos o corpo para a esquerda ou a direita, é o nosso hemisfério cerebral do lado oposto que controla a operação. Uma equipa portuguesa descobriu que esse controlo é mais complexo do que se pensava.
 

O cérebro humano consegue orquestrar os mais espectaculares movimentos corporais
A coordenação dos movimentos voluntários do corpo é uma complexa “sinfonia” orquestrada pelo nosso cérebro. E os seres humanos, sem sequer darem por isso, são excelentes “músicos” do movimento. Provam-no de cada vez que se levantam e andam.
 
Nos casos extremos – um dançarino a executar uma coreografia quase impossível ou um doente neurológico que mal consegue por um pé à frente do outro –, a potência dessa orquestração e os estragos causados pelas suas patologias tornam-se ainda mais aparentes.
 
Mas como é que o cérebro faz para controlar séries complexas de movimentos corporais? E sem ir tão longe, como faz para, simplesmente, nos permitir virar o corpo para a esquerda ou a direita? Novos resultados, publicados esta terça-feira por uma equipa da Fundação Champalimaud de Lisboa na revista Nature Communications, põem em causa uma das teorias mais geralmente aceites do funcionamento dos circuitos neuronais envolvidos.
 
Antes de mais, e de forma muito resumida: quando queremos virar para a esquerda, por exemplo, é a metade (hemisfério) direita do nosso cérebro que está aos comandos – e vice-versa. Neurónios do nosso córtex motor direito dão a ordem, que passa por uma espécie de “placa giratória” neuronal, chamada “corpo estriado” (um em cada hemisfério), que por sua vez transmite os sinais cerebrais ao lado esquerdo do corpo, fazendo-o mexer.
 
Na realidade, o corpo estriado transmite os estímulos motores às fibras musculares através de dois circuitos diferentes – um deles designado “via directa”, o outro “via indirecta”. Ora, até aqui, pensava-se que, para virarmos por exemplo para a esquerda, a via directa do corpo estriado do hemisfério direito devia activar-se, enquanto a sua via indirecta permanecia inactiva – e que, para pôr fim ao movimento, a via indirecta devia activar-se, enquanto a directa ficava inactiva.
 
Agora, uma equipa de neurocientistas liderada por Rui Costa “dissecou” estes processos no ratinho graças a uma técnica dita de “optogenética”, que permite não só observar, mas também controlar a actividade de cada um desses circuitos cerebrais. Por um lado, graças a uma manipulação genética dos neurónios que se pretende estudar, consegue-se que eles emitam luz quando são iluminados com luz; por outro, uma outra manipulação genética permite, também com impulsos de luz, “ligar” ou “desligar” à vontade um dado circuito.
 
A técnica é tão precisa que os autores estimam ter manipulado “uns 4601 a 5813 neurónios de cada corpo estriado [esquerdo e direito]”, lê-se no seu artigo.
 
Os autores observaram assim ratinhos colocados em ambientes onde tinham a possibilidade de se deslocarem livremente. E, graças a software especializado, registaram em tempo real os movimentos dos animais e a actividade neuronal dos circuitos em causa. Também analisaram os movimentos da cabeça.
 
E o que concluíram foi que os circuitos de cada corpo estriado (direito e esquerdo) funcionam de forma concertada – e que ambos têm de estar activos ao mesmo tempo para que o hemisfério cerebral produza movimento do lado oposto do corpo (neste caso, para virar o corpo e bifurcar).
 
Em particular, os cientistas mostraram que se a via directa de um lado do cérebro estiver activa mas não a indirecta – ou se as duas forem inactivadas –, os animais deixam de conseguir virar-se para o lado oposto.
 
“Conseguimos perceber que, inibindo a actividade de um ou de outro circuito [de um lado do cérebro], de forma independente, os animais deixavam de controlar os movimentos espontâneos contralaterais [movimentos do lado oposto do corpo]”, diz Rui Costa em comunicado da Fundação Champalimaud. “Por outro lado, a activação simultânea dos dois circuitos resultava na produção deste tipo de movimentos.”
 
Porém, dizem os autores, o facto de ambos os circuitos de um mesmo hemisfério cerebral estarem activados não chega: tem de existir um equilíbrio entre os seus níveis de actividade para produzir movimentos contralaterais.
 
“Os nossos resultados sugerem que, embora a actividade simultânea em ambas as vias esteja normalmente envolvida nos movimentos contralaterais, uma actividade desequilibrada [dessas vias] pode produzir efeitos motores opostos, o que poderia ser relevante para certas patologias”, escrevem ainda.
 
Patologias tais como lesões vasculares cerebrais ou ainda as doenças de Parkinson ou de Huntington, onde a coordenação motora é afectada.
 
"Uma pessoa que teve um AVC no hemisfério direito [do cérebro] não consegue mexer o braço esquerdo e vice-versa", disse Rui Costa à agência Lusa.
 
“Há muito que o controlo dos movimentos contralaterais espontâneos é alvo de estudos em doentes neurológicos, mas ainda há muito por desvendar quanto aos circuitos neuronais na base destes movimentos”, salienta, por seu lado, Fatuel Tecuapetla, autor principal do estudo.