segunda-feira, 24 de março de 2014

Vitamina A durante a gravidez é essencial para um sistema imunitário saudável nos filhos

Texto de Nicolau Ferreira publicado pelo jornal Público em 19/03/2014.
Equipa de cientistas liderada por portugueses descobriu que a ausência total de vitamina A impede a formação normal dos gânglios linfáticos, peças importantes do sistema imunitário. Artigo é publicado na revista Nature.
Pode-se ir buscar vitamina A às cenouras. 
 
 
As células indutoras do tecido linfático (a verde) no intestino
Uma equipa internacional liderada por cientistas portugueses descobriu que a ausência de vitamina A durante o desenvolvimento embrionário – neste caso nos ratinhos da experiência – impede a formação normal dos gânglios linfáticos, peças-chave do sistema imunitário. A carência de vitamina A na gravidez põe assim em causa a resposta imunitária. A descoberta, publicada hoje na revista Nature, demonstra como esta vitamina é essencial na alimentação das mulheres, principalmente nos países em desenvolvimento.
 
Pode-se ir buscar a vitamina A a muitos alimentos: cenouras, espinafres ou a batatas-doces. Esta vitamina é necessária para a formação de pigmentos visuais, regulação das células do sistema imunitário nos intestinos ou para o desenvolvimento do próprio embrião.
 
Agora, uma equipa internacional, com cientistas da Holanda e dos Estados Unidos, coordenada por Henrique Veiga Fernandes, líder de um grupo no Instituto de Medicina Molecular de Lisboa, observou que a vitamina A permitia a maturação das células que, durante o desenvolvimento embrionário dos ratinhos, vão formar os gânglios linfáticos e as placas de Peyer – estruturas do sistema linfático situadas nos intestinos, onde têm uma função imunitária importante.
 
Os gânglios linfáticos têm entre um a dois centímetros e estão distribuídos em locais como as virilhas, as axilas ou na região da garganta. Dentro dos gânglios alojam-se os linfócitos, especializados no combate de bactérias ou vírus. Outras células do sistema imunitário têm a função de levar até aos gânglios pedaços dos organismos patogénicos que infectam o corpo: uma vez aí, mostram estes pedaços ao maior número possível de linfócitos, até encontrarem o linfócito que naturalmente é mais adequado para combater aquele organismo.
 
Quando isso acontece, inicia-se uma resposta imunitária, que pode desencadear o inchaço do gânglio. Se os linfócitos estivessem espalhados pelo corpo, aquela célula imunitária que leva o pedaço do agente patogénico teria muita dificuldade em encontrar o linfócito especializado.
 
Abelhas operárias
Os gânglios formam-se durante o desenvolvimento embrionário, graças a um tipo de células do sistema imunitário – as células indutoras do tecido linfático. Saindo do fígado do feto, estas células viajam pelo sangue até que, em determinados locais do corpo, saltam dos vasos para formar os gânglios linfáticos.
 
“Estas células funcionam como abelhas operárias”, explica Henrique Veiga Fernandes ao PÚBLICO. “Quando saem do sangue, formam pequenos agregadores de células e estão sempre em movimento.”
 
Nesses locais, as células indutoras do tecido linfático sofrem um passo final de maturação. Depois, provocam alterações nas células do tecido conjuntivo e são estas que vão formar “os andaimes” dos gânglios linfáticos. Quando esses “andaimes” ficam construídos, os linfócitos vão habitá-los.
 
A equipa de Henrique Veiga Fernandes tentou descobrir o que desencadeava a maturação final das células indutoras do tecido linfático. Com testes, primeiro in vitro e depois in vivo, os cientistas chegaram à conclusão de que era necessária a presença de ácido retinóico (um composto que o corpo produz a partir da vitamina A). “A metabolização da vitamina A faz com que as células se diferenciem. Este foi o nosso ponto de partida”, diz o cientista.
 
Depois, quiseram encontrar o mecanismo celular que originava esta transição. Já se sabia que nas células indutoras do tecido linfático existem moléculas capazes de receber o ácido retinóico. Agora, a equipa descobriu que esse receptor é responsável por activar um gene no núcleo dessas células e esse gene activa, por sua vez, muitos outros genes que desencadeiam a maturação destas células. A partir daí estão prontas para pôr as células do tecido conjuntivo em acção.
 
Não existe uma ausência total de vitamina A. Devido à sua importância, há sempre uma reserva no corpo. Por isso, para se perceber qual é o efeito no sistema imunitário da inexistência total da vitamina A, os investigadores bloquearam artificialmente, com um fármaco, o gene que inicia a maturação das células.
 
“Tratámos as fêmeas de ratinhos grávidas com este fármaco. Em toda sua descendência, os gânglios eram muito pequenos ou nem sequer existiam”, explica Henrique Veiga Fernandes. Assim, menos vitamina A significa a existência de menos células indutoras do tecido linfático a amadurecerem, o que se traduz na formação de menos andaimes nos gânglios linfáticos. Este efeito é irreversível na vida dos ratinhos.
 
Apesar de estes gânglios serem normais a nível dos seus tecidos, crescem muito menos: são minigânglios, o que compromete a imunidade. Para chegar a esta conclusão, a equipa testou a resposta imunitária de ratinhos cujas mães tiveram uma dieta sem vitamina A, infectando-os com um vírus que causa infecções pulmonares. Nos ratinhos normais, a infecção foi debelada ao fim de sete a dez dias. Mas nos ratinhos com gânglios pequenos, o vírus continuava a multiplicar-se ao final de duas semanas.
 
Implicações na vacinação
Embora não seja possível fazer estas experiências em seres humanos, Henrique Veiga Fernandes explica que o sistema imunitário do ratinho e do humano são “muito semelhantes”: “Tal como no ratinho, também existem células indutoras do tecido linfático no humano.”
 
Por isso, estes resultados são importantes, principalmente em países “onde há ausência crónica de vitamina A”. Há até a possibilidade de as carências de vitamina A “minarem a eficácia das campanhas de vacinação de crianças”, alerta, por sua vez, Gérard Eberl, do Instituto Pasteur, num comentário à descoberta também na Nature. As vacinas “enganam” o sistema imunitário, levando-o a produzir substâncias específicas para combater cada invasor, o que poderá ficar em causa com os gânglios pequenos.
 
A novidade obriga ainda a uma mudança de paradigma sobre a forma como se olha para o desenvolvimento do sistema imunitário. Pensava-se que esse desenvolvimento durante a gravidez decorria sem interferências do exterior: era só carregar no play – a fusão do espermatozóide com o óvulo – e deixar o filme correr.
 
“Pela primeira vez, demonstrou-se que esse desenvolvimento está dependente de factores ambientais”, refere o cientista. “É extraordinariamente surpreendente que num ambiente, aparentemente tão protegido, a dieta materna possa ter um papel tão crítico.”
 
Para Henrique Veiga Fernandes, isto é “uma ruptura completa” que abre um campo de investigação novo, para perceber “de que forma o sistema imunitário consegue percepcionar o meio externo”. As questões sucedem-se agora: qual é o regime alimentar mais benéfico ligado a uma doença ou a uma vacina? Os comportamentos de uma pessoa têm influência na resposta do sistema imunitário?
 

 

Novo método pode permitir diagnosticar precocemente o cancro do pâncreas

Artigo publicado pelo jornal Público em 21/03/2014.
Os cientistas que desenvolveram a técnica acreditam que ela poderá estar disponível nos hospitais dentro de cinco anos.
 

O actor norte-americano Patrick Swayze morreu em 2009, aos 57 anos, dois anos depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro do pâncreas
O cancro do pâncreas é um dos mais temíveis: é muitas vezes detectado numa fase avançada, quando já se espalhou para outros órgãos – o que faz com que apenas 5% dos doentes sobrevivam cinco anos ou mais após o diagnóstico. Mas agora, essa situação poderá estar prestes a mudar. Uma equipa de cientistas da Universidade de Gotemburgo (Suécia) acaba de anunciar, na revista Journal of the National Cancer Institute, o desenvolvimento de uma técnica que permitiu detectar, com 97% de certeza, certos precursores do cancro do pâncreas, tornando possível, no futuro, a sua prevenção ou tratamento.
 
Sabe-se hoje que a presença de quistos no pâncreas – tumores cheios de fluido – pode ser um sinal precursor desse cancro, explica a universidade sueca em comunicado.
 
Estes quistos costumam ser descobertos acidentalmente na realização de exames com técnicas de imagiologia tais como a tomografia axial computadorizada (TAC) ou a ressonância magnética. Nem todos têm potencial canceroso, mas como não é possível prever a sua evolução com base nas imagens, isso conduz a análises desnecessárias – e pouco fiáveis – do líquido contido nos quistos, bem como a cirurgias invasivas que apresentam riscos para as pessoas.
 
O novo método agora desenvolvido por Karolina Jabbar e colegas consiste em utilizar a técnica dita de espectrometria de massa para detectar com precisão, nos quistos, a presença de proteínas chamadas mucinas, cuja produção aumenta nos tumores malignos. E permitiu aos cientistas diagnosticarem correctamente que, entre 79 quistos, 77 eram efectivamente precursores de cancros.
 
“Trata-se de um resultado espectacularmente bom para um teste de diagnóstico, e esperamos que o nosso método permita descobrir precocemente um maior número de cancros do pâncreas, numa fase em que ainda é possível tratá-los ou preveni-los”, diz Karolina Jabbar, citada no mesmo documento.
 
Os autores também conseguiram analisar diferentes quistos e identificar, com 90% de certeza, os que já tinham evoluído para um cancro. Isto significa que também poderá ser possível saber, em caso de detecção de um quisto potencialmente maligno no pâncreas, se o doente precisa logo de cirurgia para o remover ou se convém, pelo contrário, esperar e monitorizar o seu crescimento .
 
“O método existe e permite-nos medir os marcadores biológicos [do cancro do pâncreas] rapidamente e com precisão”, diz Gunnar Hansson, um dos líderes do estudo. Para mais, “requer uma amostra 25 vezes mais pequena de fluido do quisto que as análises convencionais [do conteúdo dos quistos]”. E conclui: “Tenho a certeza de que dentro de cinco anos, vai haver espectrómetros de massa nos corredores dos hospitais.”

Cientistas identificam mais um mecanismo que acelera crescimento e formação de tumores

Artigo publicado na SAPO Saúde em 25/02/2014.
Cientistas identificam mais um mecanismo que acelera crescimento e formação de tumores.
 

O estudo sugere que uma proteína descontrola as moléculas do ácido ribonucleico, vulgarmente conhecido pela sigla RNA, e estimula a formação e multiplicação das células cancerígenas.

Cientistas do Instituto de Investigação em Biomedicina de Barcelona (IRB), em Espanha, descobriram um mecanismo controlado pela proteína CPEB1 que afeta mais de 200 genes relacionados com a proliferação celular e com a progressão de tumores.

O mecanismo foi identificado a partir da utilização de células de linfoma de Hodgkin. O estudo, publicado no domingo na revista Nature, mostrou que a CPEB1 altera uma região específica de um tipo de molécula de RNA. Segundo um dos autores, Raúl Méndez, a CPEB1 descontrola centenas de moléculas de RNA que estimulam a desdiferenciação celular, quando a célula adulta passa a agir como embrionária, e a sua proliferação, promovendo o alastramento do cancro.

"As proteínas CPEB são necessárias durante o desenvolvimento e também durante a regeneração do tecido, mas se ficam continuamente ligadas, as células dividem-se em momentos errados e formam o tumor", explica Méndez.

"Esta descoberta é positiva do ponto de vista terapêutico, pois significa que se removermos a CPEB1 de células saudáveis, a sua função pode ser assumida por qualquer outra proteína CPEB. Em contraste, em tumores, apenas a CPEB1 tem a capacidade de encurtar essas regiões, afetando apenas as células tumorais", explicou Felice Alessio Bava, investigador principal.

O laboratório desenvolveu um sistema de rastreio de moléculas terapêuticas para criar um medicamento que pode inibir a ação da CPEB em tumores, com poucos efeitos secundários nas células saudáveis.

"Não há drogas atualmente disponíveis que influenciam a regulação da expressão do gene, a este nível. As nossas descobertas abrem uma janela terapêutica pioneira. Estamos otimistas com o potencial de proteínas CPEB como alvos", conclui Méndez.

Cientistas australianos descobrem como as células cancerígenas enganam organismo

Artigo da LUSA publicado em 24/03/2014 pela Sapo na rubrica Saúde.
Células cancerígenas emitem molécula que impede sistema imunitário de combater o cancro.

Uma equipa de cientistas australianos acredita ter descoberto a forma como as células cancerígenas enganam o sistema imunológico do organismo, levando-o a pensar que são inofensivas, noticiou hoje a cadeia australiana SBS.

A descoberta permite uma maior compreensão da forma como os glóbulos brancos, também conhecidos por "células assassinas", distinguem as células inofensivas das doentes e poderá levar ao desenvolvimento de novos tratamentos para os cancros mais agressivos e avançados, segundo o investigador principal do projeto, Mark Smyth.

"Diz-nos algo que não sabíamos antes. E tem também implicações nos vírus", disse Smyth, do Instituto Berghofer de Investigação Médica de Queensland (QIMR/Queensland Institute of Medical Research - Berghofer), na Austrália.

"Essencialmente mostra que o cancro 'sequestra' o sistema de reconhecimento e ativação imunológica, o que lhe permite espalhar-se pelo corpo", acrescentou, considerando a descoberta "muito entusiasmante".

"Passei grande parte da minha carreira a tentar convencer as pessoas de que o sistema imunológico reage ao cancro", sublinhou, acrescentando: "O nosso trabalho é importante, mas apenas uma pequena parte do retrato completo".

Os investigadores identificaram uma proteína conhecida como CD96, que se encontra nos glóbulos brancos e que tem como função evitar que as "células assassinas" ataquem os tecidos saudáveis.

Molécula inibe sistema imunitário

Contudo, os cientistas descobriram que as células cancerígenas emitem uma molécula, reconhecida pela CD96, que impede as 'células assassinas' de reagirem.

A equipa conseguiu provar a sua teoria com experiências em laboratório. O próximo passo é fazer testes em células humanas.

"Se resultar, faz sentido desenvolver anticorpos para bloquear a proteína CD96", disse Smyth, cuja descoberta foi publicada no jornal Nature Immunology.
"A imunoterapia revolucionou o tratamento do cancro. Algumas pessoas estão a sair dos tratamentos curadas", sublinhou.

O diretor do QIMR Berghofer Research Institute, Frank Gannon, adiantou que este progresso é o resultado de muitos anos de trabalho.

"É a coisa mais entusiasmante que vi nos últimos 20 anos", disse, adiantando que, dentro de cinco anos, será possível fazer testes em humanos.

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Álcool, tabaco e obesidade alimentam subida crescente de casos de cancro

Artigo publicado pelo jornal Público no Dia Mundial da Luta Contra o Cancro.
 Peritos da Organização Mundial de Saúde defendem que a única solução é a prevenção, sugerindo a criação de um imposto para bebidas açucaradas.


O número de casos de cancros no mundo poderá subir 70% nos próximos 20 anos, alertou esta segunda-feira a Organização Mundial de Saúde (OMS) no Relatório Mundial sobre Cancro 2014. Os peritos dizem que a forma de travar a epidemia não passa apenas pela cura, mas sobretudo pela prevenção, e propõem, por exemplo, a criação de um impostos especial para bebidas açucaradas. Entre as causas da subida estão o consumo de álcool, de açúcar e a obesidade, cita o jornal britânico The Guardian.

Por ano, prevê-se que surjam no mundo cerca de 25 milhões de novos casos de cancro. Metade destes podem ser prevenidos, já que estão ligados a estilos de vida, refere o documento produzido pela Agência Internacional para a Pesquisa em Cancro, uma unidade da OMS especializada na patologia. Não é realista travar a subida pensando apenas nas formas de curar a doença, defendem os seus autores, notando que é essencial o enfoque na prevenção. Até para os países mais ricos o fardo vai tornar-se insustentável em termos de custos, refere o documento, citado pelo The Guardian.

Mas a doença está cada vez mais presente também em países mais pobres, onde os cancros mais frequentes têm origem em infecções, como é o caso do cancro do colo do útero, muito prevalecente nestes países, onde não existe rastreio e muito menos acesso à vacina.

Nos países mais ricos, os cancros que estão a aumentar estão sobretudo ligados a estilos de vida, associados “ao uso crescente do tabaco, consumo de álcool, ingestão de alimentos transformados e falta de exercício físico”, escreve na introdução ao relatório Margaret Chan, directora da OMS.

Prevenção e detecção precoce
Christopher Wild, director da Agência Internacional para a Pesquisa em Cancro e um dos autores do documento, disse que, apesar dos avanços no lado da cura, “o problema não se resolve apenas deste lado. É preciso mais prevenção e a detecção precoce é essencial.”

Bernard Stewart, investigador da University of New South Wales e outro dos autores, apelou à discussão de medidas como a criação de um imposto especial para as bebidas açucaradas, como uma possível forma de fazer diminuir cancros que têm origem na obesidade e na falta de exercício físico.

Em relação ao álcool, lembrou que o seu consumo esteve na origem de 337,400 milhões de mortes no mundo em 2010, sobretudo entre homens. A maioria são mortes por cancro do fígado, mas o álcool também aumenta o risco de cancro da boca, esófago, intestino, pâncreas, mama e outros. “A sua rotulagem, os locais onde é comercializado e os preços de venda ao público devem ser questões a debater”, disse Stewart. Propõe também a criação de um imposto para bebidas açucaradas. O relatório refere que todos os esforços para reduzir a percentagem de refrigerantes que têm adição de açúcar deviam ser prioritários.

Temos os neandertais na pele, afirmam cientistas

Artigo de Ana Gerschenfeld publicado pelo jornal Público em 30/01/2014.
 O legado genético que os neandertais deixaram aos humanos modernos é mais substancial do que se pensava, mas concentra-se em regiões específicas do nosso genoma, influenciando-o ainda hoje características da nossa pele, o nosso risco perante certas doenças e até alguns comportamentos.

Os neandertais, primos euroasiáticos dos humanos modernos, extinguiram-se há quase 30 mil anos
 Já se sabia, com base na sequenciação da totalidade do ADN de um neandertal que viveu há 50 mil anos, obtida em 2013, que os humanos modernos e os neandertais se cruzaram e produziram descendência, provavelmente há 40 mil a 80 mil anos, pouco de pois da chegada da nossa espécie à Europa vinda de África. De facto, entre 1% e 3% do genoma das pessoas actuais não originárias de África provêm dos neandertais, esses nossos primos que surgiram na Europa e Ásia há uns 400 mil e se extinguiram há 28 mil anos. Mas na realidade, a contribuição genética total dos neandertais para o ADN das populações europeias e asiáticas actuais poderá ter bastante mais do que isso – próxima de 20% –, afirmam cientistas norte-americanos num artigo publicado na revista Science com data de sexta-feira.

"Os 2% do vosso ADN de neandertal poderão ser diferentes dos meus 2% de ADN de neandertal e situar-se em partes diferentes do genoma”, diz o co-autor Joshua Akey, da Universidade de Washington em Seattle (EUA), citado pela agência noticiosa Reuters. E tudo junto, “isso dá uma proporção substancial de genoma de neandertal”. Para obter os seus resultados, Akey e o seu colega Benjamin Vernot analisaram os genomas de 379 europeus e 286 asiáticos.

Tanto estes dois cientistas como uma outra equipa – liderada por David Reich, da Universidade de Harvard (EUA) e na qual se inclui Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Leipzig (Alemanha), co-autor da sequenciação do referido genoma de neandertal – chegaram ainda à conclusão de que o ADN proveniente dos neandertais não se encontra uniformemente distribuído dentro do genoma dos humanos modernos. E ambos os estudos – o da segunda equipa foi publicado esta quinta-feira na revista Nature – também concluem que aquele antigo contributo se concentra, em particular, nos genes dos humanos modernos que influenciam as características da pele e do cabelo.

Os cientistas especulam aliás que esses genes, ligados à produção de queratina, proteína fibrosa que confere resistência à pele, ao cabelo e às unhas, terão sido benéficos para a nossa espécie em termos de adaptação a latitudes mais nórdicas. “É tentador pensar que os neandertais já estavam adaptados a um ambiente não africano e que transmitiram essa vantagem genética aos humanos modernos”, diz Reich, citado pela agência noticiosa AFP.

A equipa de Reich, que analisou as variantes genéticas de 846 pessoas de origem não africana, de 176 pessoas de África subsariana e do neandertal fóssil, aponta também para uma herança vinda dos neandertais ao nível de genes que afectam o risco dos não africanos perante a diabetes de tipo 2, a doença de Crohn, o lupus ou a cirrose biliar – e até... a capacidade de deixar de fumar, escrevem os autores.

Porém, as áreas do genoma humano moderno desprovidas de ADN de neandertais foram “as mais entusiasmantes”, salienta Sriram Sankararaman, co-autor do estudo na Nature, em comunicado da universidade Harvard, “porque sugerem que a introdução de alguns genes de neandertal terá sido prejudicial para os antepassados dos não africanos modernos e que essas mutações foram posteriormente removidas pela acção da selecção natural”.

Estes cientistas mostraram que as regiões com menor contributo genético dos neandertais concentram-se em genes principalmente activos nos testículos e no cromossoma X, um dos dois cromossomas sexuais humanos, e têm a ver com a chamada infertilidade dos híbridos (por exemplo da mula, cruzamento de cavalo e burro). “Isso sugere que quando os nossos antepassados se cruzaram e se misturaram com os neandertais, as duas espécies estavam no limiar da incompatibilidade biológica”, diz Reich no mesmo comunicado. Ora, naquela altura, estas duas populações tinham evoluído separadamente durante meio milhão de anos. “É fascinante que este tipo de problemas tenha surgido num período de tempo tão curto”, acrescenta Reich.

Erik Trinkaus, da Universidade Washington em St Louis (EUA), um dos grandes especialistas mundiais dos primeiros humanos, que não participou nos estudos, diz contudo, citado pela Reuters, que a estimativa agora obtida da proporção de ADN de neandertal que perdura na nossa espécie deve ser considerada com prudência, uma vez que, até aqui, apenas foi possível extrair material genético de meia dúzia de fósseis de neandertais – uma amostra demasiado pequena para ter grandes certezas.

Há 7000 anos, um caçador-recolector europeu tinha tez escura e olhos azuis

Artigo de Ana Gerschenfeld publicado pelo jornal Público em 27/01/2014.
Resultados de análise genética revelam pormenores sobre mudanças da fisiologia humana associadas à agricultura — e também sobre a evolução da pigmentação dos nossos antepassados europeus.


O crânio do caçador-recolector europeu cujo ADN foi agora sequenciado.     

Reconstituição artística da cabeça do homem de La Braña


O esqueleto tal como foi descoberto em 2006  


Etapas da reconstitução artística da cabeça
 Uma equipa internacional de cientistas acaba de obter o primeiro genoma completo de um caçador-recolector europeu. Os resultados, publicados online pela revista Nature no domingo ao fim da tarde, trouxeram com eles várias surpresas.

Restos fósseis bem conservados de dois caçadores-recolectores que viveram há cerca de 7000 anos foram descobertos, em 2006, na gruta de La Braña-Arintero, nos Montes Cantábricos (noroeste de Espanha). E Carles Lalueza-Fox, do Instituto de Biologia Evolutiva em Barcelona, e colegas conseguiram extrair ADN de um dente de um deles.

Trata-se portanto do genoma de um europeu do Mesolítico – há 5000 a 10.000 anos, entre o Paleolítico e o Neolítico –, altura da introdução progressiva da agricultura e da criação de animais, a partir do Médio-Oriente, no continente europeu. Ou seja, de um europeu que ainda tinha um estilo de vida “ancestral”.

Ora, os especialistas pensam que a mudança radical de estilo de vida, de caçador-recolector para agricultor, terá levado a alterações no genoma humano, em particular associadas a dieta e à imunidade. Do lado alimentar, porque foi preciso que aqueles primeiros agricultores conseguissem digerir o leite produzido pelos rebanhos e o amido das plantas cultivadas; do lado imunitário, para serem capazes de vencer novas doenças, vindas dos animais domésticos.

Porém, até agora, dada a escassez de dados, sabia-se bastante pouco acerca desta “transição crucial”, escrevem os cientistas no seu artigo. O genoma do homem de La Braña contribui para colmatar esta lacuna – e, a se confirmarem os resultados noutros genomas antigos, poderá pôr em causa uma parte dessas especulações.

Do ponto de vista digestivo, a análise genética agora realizada sugere que, de facto, aquele caçador-recolector tinha provavelmente uma intolerância à lactose e dificuldades em digerir coisas como batatas ou cereais, “corroborando a hipótese de que estas capacidades evoluíram mais tarde na transição para a agricultura”, escrevem ainda os autores.

Porém, no que respeita à resistência ao micróbios, o genoma sequenciado revelou algo inesperado: o facto de certas mutações associadas à resistência às doenças já terem estado presentes naquele nosso longínquo antepassado. O que “sugere que a transição para o Neolítico não terá sido o motor de todos os casos de inovação adaptativa ao nível dos genes da imunidade que hoje observamos nos europeus modernos”, lê-se ainda na Nature.

As surpresas não se ficaram por aí: ao que tudo indica, aquele caçador-recolector de La Braña tinha a pele escura como os africanos, o cabelo igualmente escuro e os olhos… azuis. “Aquele indivíduo possuía versões africanas dos genes que, nos europeus actuais, determinam a pigmentação clara da pele – o que indica que tinha a pele escura, embora não saibamos o tom exacto”, diz Lalueza-Fox em comunicado do Conselho Superior da Investigação Científica (CSIC) espanhol. E acrescenta que outra surpresa, ainda maior, foi “constatar que [o homem de La Braña] possuía as variantes genéticas que hoje produzem olhos azuis nos europeus, o que resulta num fenótipo [aspecto físico] único”, que aliás já não existe nas população europeias contemporâneas.

Este último resultado parece virar do avesso o que se pensava sobre a evolução da pigmentação dos europeus após a sua chegada a Europa, vindos de África. “Até agora, considerava-se que a cor de pele clara tinha evoluído bastante cedo na Europa, no Paleolítico superior, associada à fraca radiação ultravioleta nas latitudes mais elevadas”, disse Lalueza-Fox à agência noticiosa AFP. “Ora, claramente, esse não é o caso. Essa evolução aconteceu muito mais tarde, provavelmente no Neolítico – e poderá ter a ver com as mudanças de regime alimentar, nomeadamente a diminuição dos níveis de vitamina D na dieta dos agricultores em relação à dos caçadores-recolectores.”

O trabalho não acaba aqui. “Para confirmar se os traços genómicos deste homem de La Braña podem ou não ser estendidos a outras populações do Mesolítico, serão precisas mais análises de genomas antigos da Europa Central e do Norte”, concluem os cientistas. E também a análise do ADN do outro esqueleto humano encontrado no mesmo local. “A nossa intenção é tentar recuperar o genoma do segundo indivíduo, que não se encontra tão bem preservado como o primeiro, de forma a obtermos mais dados sobre as características genéticas destes primeiros europeus”, diz o co-autor Iñigo Olalde.